Vou contar em forma de história:
Há quase 35 anos, nasceu um garoto que era diferente.
Tinha tudo que toda criança normal tem, porém pensava que a maioria dos outros eram parados demais.
O garoto brincava sempre a mil por hora, não desligava fácil. Pensamento acelerado, desatento, sofreu muitos acidentes, inclusive uma queimadura grave que carrega a cicatriz no braço até hoje. Acidentes estes que ocorreram por pura desatenção e impulsividade.
Seu pai era diferente dos outros pais, sempre elétrico e impulsivo.
Na escola, a desatenção e desorganização predominavam. Era muito inteligente, pois em ciências e afins sempre se saia de forma honrosa.
Certo dia, num concurso estadual de frases para conscientização sobre segurança no transito, ele se inspirou e ganhou de todos da escola por apenas relatar que Sem cinto de segurança não vai, ou algo assim, faz muito tempo.
Foi aí que percebeu que tinha o dom da escrita. Sua frase ficou até as ultimas fases das eliminatórias. Mesmo não ganhando daquela vez, algo dentro deste garoto despertou.
Mesmo desperto, ainda sim, a impulsividade o tirava do rumo correto, não conseguindo, por mais que lutasse manter o foco.
Ele se sentia mal com isso.
Era desprezado pela maioria das crianças, por ser assim.
Por correr demais, rápido mesmo, chegou a integrar a equipe de atletismo da escola, mas a falta de memória e organização soou como indisciplina para o professor de educação física, que mesmo querendo o mais rápido na equipe, o dispensou julgando ser falta de comprometimento.
Por ser assim, este garoto acabou se isolando de todos. Poucos ele podia chamar de amigos.
Nessa época ele tinha um amigo apenas, o primeiro, que era de uma família dissolvida em meio aos conflitos pelas bebedeiras do pai.
Ele sempre tentava ajudar o amigo e conversava com todos na casa, mas ao sair as coisas voltavam a ser iguais para o seu infeliz amigo.
Já em casa, seus pais, por não entenderem o que acontecia em momentos se culpavam e discutiam. Em outros casos, brigavam como garoto e o discriminavam.
Ele vive desligado, atrapalhado, agitado, o pai gritava. Esse garoto não tem respeito. E com isso a cada dia ele se fechava ainda mais.<
Na adolescência, já morando em outra cidade, o garoto era conhecido por ser de poucos amigos.
Vivia em uma área bem isolada do seu bairro, em uma chácara. Devido a distancia da área urbana mais próxima e terreno íngreme, de grandes subidas, ele sendo impaciente corria o caminho todo até a escola, com mochila e tudo. Eram 3,5km de distancia até a escola. Isso e a natação o deixaram em uma forma física perfeita para corredor, pois até poucos aos antes era um garoto franzino.
Em algum tempo, por não se adaptar as matérias novas e pela discriminação sofrida, perdeu o animo e abandonou os estudos.
Já tinha suas dificuldades em focar e lembrar-se das aulas passadas. Não conseguia anotar nada sequencialmente nos cadernos. Havia adotado um sistema de lembretes, que até então funcionara, mas naquele momento, devido à pressão, já não tinham mais sucesso.
Como é comum na adolescência ele socializou como grupo por afinidade e por influencia de um dos poucos que pode chamar de amigo até hoje, começou a gostar de rock.
Foi apresentado ao grupo e ouviu muito heavy metal, discutiu sociologia, filosofia, politica e voluntariado.
Nessa época as rádios ainda tocava November Rain, do Guns N` Roses.
Descobriu outras variações musicais e suas filosofias distintas. Conviveu com muitas pessoas diferentes. Teve a primeira namorada, que o chamava de desligado e ria muito com isso.
Cresceu, viu grandes amigos partirem vitimas da violência, da imprudência de certos motoristas bêbados. Outros se perderam em vícios. Por sorte foi a menor parcela.
Ainda sim, ele não conseguia se estabilizar nos empregos, apesar de ser sempre muito elogiado, principalmente por manter a educação e respeito.
Retomou os estudos e dessa vez teve a sorte de contar com professores mais dispostos a ajudar. Notaram sua dificuldade e tornaram as aulas extremamente dinâmicas, o que o acelerou e de alguma forma ajudou muito. Terminou o ensino médio já pensando na faculdade.
Apaixonou-se e desiludiu inúmeras vezes, inclusive recentemente.
Na faculdade, de inicio ia tudo bem. Contabilidade ele devorou por auxilio de um professor veterano e renomado escritor da área. Ele usava o livro Teoria da administração geral como base para as aulas.
No semestre seguinte o foco foi interrompido pela bagunça em sala. Ele não se misturava por perceber que não conseguia entender com barulho, pois cada risada o fazia fugir do assunto da aula e depois não tinha como retomar.
Parou a faculdade devido a sua mãe ter ficado muito doente e voltou a sua cidade.
Nessa época se aventurou na produção de eventos, pois em 1996 havia produzido o Suzano Rock Festival, com bandas que hoje tem projeção mundial e na época vieram de longe para participar na iniciativa.
Fez dois shows consecutivos em São Paulo, porém a desorganização e falta de foco o atrapalharam outra vez. Tinha um amigo e sócio, que servia de agenda ambulante. Os shows ocorreram perfeitamente, sem qualquer tipo de ocorrência. Ainda sim, a turnê que estava nos planos acabou no vácuo.
Após a recuperação da sua mãe, decidiu tentar algo novo e fez um teste vocacional. O teste indicou a área de comunicação social ou em segunda instancia administração. Por ultimo vinha informática e afins.
Ingressou em jornalismo e lá finalmente sentiu-se em casa.
Pessoas que falavam a mesma língua e determinadas a fazer o melhor pela sociedade divulgando os fatos de forma criteriosa, apurada e ética.
Fez grandes amigos neste curso. Neste período conheceu a mulher que hoje é mãe da filha dele. Não estão juntos, porém o respeito permaneceu. Os esquecimentos, momentos de desatenção, onde ela se sentia falando sozinha, a impulsividade e agitação pesaram demais.
Ela sofreu muito e ele entendeu os motivos da separação.
A filha é a sua ancora na realidade e inspiração.
Devido complicações financeiras, foi obrigado a interromper o curso do que mais ama fazer.
Quando as coisas melhoraram, ao tentar retomar o curso, o diploma de jornalismo havia sido desvalorizado pela infeliz decisão do Superior Tribunal Federal, o que na visão dele soou como uma forma indireta de retomada da censura.
Desiludido, procurou emprego na primeira área que aparecesse, pois tinha de pagar as contas e acabou no telemarketing. Área onde descobriu que até o serviço mais desvalorizado pelas pessoas tem sua importância. Percebeu que o salario não dava para pagar as contas e começou a fazer trabalhos de manutenção de micros para complementar a renda.
Ainda sim, mudando de empresa após outra, encontrou uma onde fez amigos e percebeu que podia ajudar muita gente, principalmente aquele que ligava desesperado pedindo por auxilio.
Destacava-se em suas qualidades, porém a impulsividade sempre se mostrou presente. Era proativo, mas ficava dispersivo. Teve sorte de seus amigos o alertavam e ele retomava a tempo.
Aprendeu grandes lições de humildade. Conviveu com pessoas em situação de maior dificuldade.
Ainda sim, sua desorganização pesava na produtividade. Só qualidade não basta para empresa alguma. Ele é ciente disso, pois tem noções de administração e conhece os custos de manter um funcionário.
Depois de sair desta empresa, não conseguiu manter-se empregado e entrou em depressão.
Quando decidiu procurar ajuda, a psicóloga o entrevistou e após uma longa analise o informou sobre o TDAH.
Nisso ele se recordou em ter passado na infância por acompanhamento, porém algo havia causado a interrupção do tratamento.
Ao iniciar o tratamento com a especialista em São Paulo, tudo mudou logo na primeira semana.
Sua memória estava funcionando, não a 100%, mas de uma forma bem melhorada.
Após ser medicado, a bagunça pela casa virou coisa do passado, desorganização zero.
Passou a assimilar mais rápido os idiomas que sempre teve dificuldades em memorizar.
Consegue ler em tempo recorde para ele. Devora livros um depois do outro.
Perdeu o habito de interromper as pessoas durante diálogos e consegue finalmente concluir seus assuntos sem fazer rodeios.
Está mais paciente. Não é aquele cara que preferia ficar em pé, porque a cadeira era como uma prisão. <
Finalmente sentiu paz, depois de 34 anos de luta contra um inimigo oculto.
Ainda sente a presença desse inimigo, o tal TDAH, mas tem domínio sobre ele.
Ouve muito sobre motivação, meditação, métodos de gestão de tempo e finanças.
Voltou a cantar, coisa que não fazia desde a adolescência.
Está feliz, apesar de só. Reestruturando a vida.
Depois de ler sobre a potencialidade de uma pessoa com TDAH migrar para violência e vícios, elaborou um projeto social para dar suporte a crianças com TDAH no município onde mora, obteve apoio de uma grande organização e do atual prefeito, que se demonstrou bastante receptivo.
Essa é parte da minha história. Já trabalhei em muitas áreas. Fiz de tudo e conheço um pouco de cada processo.
Hoje lembro os nomes que haviam quase sumido na memória:
O primeiro amigo era Luiz Antônio, do qual não tive mais notícias e é chara do professor de ciências daquela época.
Márcio Rinaldo é o amigo que me influenciou ao rock e até hoje um grande amigo.
Carla Aparecida foi a primeira namorada deste desligado.
Geraldo Francisco Filho foi o professor de contabilidade.
Eu percebo a melhora gritante e sou muito cético no que se refere à medicina.
Ou funciona ou deixa pra lá. Se tive este beneficio, mesmo que tardio, porque não estende-lo as crianças que tem o mesmo problema.
Deixa-las ter melhores condições e liberar seus potenciais.
Vamos gerar valores e crescimento social se avançarmos no tratamento do TDAH de forma séria e responsável. Assim também reduzimos muito do que vemos aí, como crimes por impulsividade e afins.
Tive sorte de ser rodeado de pessoas boas e por isso não caí no caminho errado.
Vamos pensar no outro um pouco mais, pois somos uma sociedade.
Somos contribuintes e não temos o direito de decidir?
Só na hora de pedir voto é que conta?
Desculpem-me, mas este brasileiro aqui não é mais um desmemoriado.
Será que é isso que preocupa tanto para algo tão simples demorar a ser aprovado?
Boa sorte amigos.
Vamos ganhar essa!