O TDAH NA ERA DIGITAL: ENTRE A VALIDAÇÃO COMUNITÁRIA E A BANALIZAÇÃO DO SOFRIMENTO
INTRODUÇÃO: A FACA DE DOIS GUMES DA CONEXÃO DIGITAL
Dr. Rodrigo Borghi
As redes sociais transformaram radicalmente a maneira como indivíduos com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e seus familiares se conectam e buscam informação. É inegável o valor desses espaços digitais, que criaram comunidades vibrantes onde o compartilhamento de experiências, o apoio mútuo e a sensação de pertencimento florescem. Essa conexão pode ser uma ferramenta poderosa para combater o estigma e o isolamento que, por tanto tempo, acompanharam o transtorno, centrando a narrativa nas perspectivas de quem possui a experiência vivida. A democratização da conversa sobre saúde mental é, sem dúvida, um dos legados mais positivos da era digital.
Contudo, essa mesma paisagem digital apresenta um paradoxo. Um estudo científico recente e rigoroso, conduzido por Vasileia Karasavva e seus colaboradores, cunhou a expressão “a faca de dois gumes da hashtag” (a double-edged hashtag) para descrever o fenômeno do conteúdo sobre TDAH na plataforma TikTok. Esta metáfora captura perfeitamente a tensão central: ao mesmo tempo que oferece validação e comunidade, o ambiente online está saturado de informações imprecisas, excessivamente simplificadas e, em última análise, potencialmente prejudiciais. O objetivo deste artigo, elaborado para a comunidade da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), não é demonizar a tecnologia ou a partilha de experiências pessoais. Pelo contrário, visa fornecer um “mapa e uma bússola” para que pacientes, familiares e cuidadores possam navegar neste terreno complexo com discernimento, segurança e pensamento crítico.
A proposta deste texto é, portanto, capacitar o leitor. Ao mergulhar nos dados científicos sobre a qualidade da informação online e ao desvendar os mecanismos psicológicos que tornam esse conteúdo tão atraente, buscamos fortalecer a comunidade ABDA. A compreensão desses fenômenos é o primeiro passo para que cada indivíduo se torne um consumidor crítico de conteúdo, aprendendo a separar o apoio genuíno da desinformação perigosa. Este é um esforço essencial para proteger não apenas a integridade do diagnóstico de TDAH, mas, fundamentalmente, para proteger e validar a realidade do sofrimento genuíno vivenciado por aqueles que enfrentam os desafios clínicos do transtorno.
1 O FENÔMENO #TDAH: ALCANCE VIRAL, PRECISÃO QUESTIONÁVEL
A popularidade do conteúdo sobre TDAH em plataformas como o TikTok atingiu uma escala que desafia a compreensão. É um verdadeiro fenômeno viral que, ao ser examinado sob a lente da ciência, revela uma desconexão alarmante entre seu alcance massivo e sua precisão clínica.
1.1 A Escala da Popularidade vs. A Realidade da Evidência
Os números apresentados no estudo de Karasavva et al. (2025) são impressionantes. A análise dos 100 vídeos mais populares com a hashtag #ADHD (dos quais 98 foram incluídos na análise final) revelou um alcance monumental. Apenas 90 desses vídeos, para os quais os dados de visualização estavam completos, acumularam um total de 495.729.000 visualizações. Isso se traduz em uma média de mais de 5,4 milhões de visualizações por vídeo, com cada um sendo curtido, comentado e salvo por centenas de milhares de usuários. Esses dados não deixam dúvida: a hashtag #TDAH é um dos tópicos de saúde mais consumidos e disseminados nas redes sociais.
No entanto, quando essa popularidade avassaladora é contrastada com a qualidade da informação, o cenário se torna preocupante. Psicólogos clínicos com vasta experiência em TDAH avaliaram cada alegação feita nesses vídeos. O resultado foi contundente: apenas 48,7% das alegações sobre os sintomas do TDAH foram consideradas alinhadas com os critérios diagnósticos do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Isso significa que a maioria, ou 51,3% das alegações, era clinicamente imprecisa, enganosa ou simplesmente incorreta.
Aprofundando a análise da natureza dessa imprecisão, o achado torna-se ainda mais revelador. Das alegações que não se alinhavam com os critérios para TDAH, a grande maioria não descrevia sintomas de outros transtornos mentais, mas sim aspectos comuns da condição humana. Especificamente, 68,5% dessas alegações incorretas foram classificadas como “refletindo melhor a experiência humana normal”, e 42,0% como um “sintoma transdiagnóstico”, ou seja, um sintoma como a desregulação emocional que pode ocorrer em diversas condições e não é específico do TDAH. Em suma, o conteúdo viral sobre TDAH frequentemente reembala dificuldades universais — como procrastinar, se distrair ou sentir-se desorganizado — sob o rótulo de um transtorno neurobiológico específico.
1.2 Quem São os “Especialistas”? Credenciais e Motivações
Uma pergunta fundamental que emerge é: quem são os criadores por trás desse conteúdo massivamente popular? A análise das credenciais revela uma ausência quase total de profissionais de saúde qualificados. Apenas 20,4% dos criadores mencionaram qualquer tipo de credencial em seus vídeos, e destes, a esmagadora maioria (83,6%) citou a “experiência vivida” como sua única fonte de autoridade. Notavelmente, nenhum (0%) dos criadores se identificou como psicólogo clínico licenciado em nível de doutorado (PhD ou PsyD) ou como médico (MD). A voz que domina a narrativa digital sobre o TDAH não é a da expertise clínica, mas a da experiência pessoal anedótica.
Além da falta de qualificação formal, um outro fator pode influenciar a natureza do conteúdo produzido: o incentivo financeiro. A investigação dos perfis dos criadores revelou que 50% deles promoviam produtos que estavam vendendo (como planners, fidget spinners ou serviços de coaching) ou buscavam compensação financeira direta através de doações. Essa motivação comercial pode criar um viés significativo, incentivando a produção de conteúdo mais sensacionalista, mais generalista e mais “relacionável” para atrair um público maior e, consequentemente, gerar mais receita. A necessidade de engajamento pode, assim, sobrepor-se à necessidade de precisão.
O que esses dados revelam não é um conjunto de fatos isolados, mas um sistema que se autoalimenta e perpetua a desinformação. O processo pode ser descrito como um ciclo vicioso:
1. Criação: Criadores, muitos motivados por engajamento e potencial ganho financeiro, produzem conteúdo que é altamente “relacionável” porque se baseia em experiências humanas comuns, e não em critérios clínicos estritos.
2. Amplificação: O algoritmo da plataforma, projetado para maximizar o tempo de tela do usuário, identifica esses vídeos de alto engajamento (curtidas, compartilhamentos) e os promove massivamente.
3. Consumo e Distorção: Os usuários, especialmente aqueles que buscam respostas para suas próprias dificuldades, consomem esse conteúdo em grande quantidade. O estudo mostra que um maior consumo está diretamente associado a uma superestimação da prevalência do TDAH na população geral e a uma percepção de que os sintomas são mais severos em todas as pessoas, com ou sem o transtorno.
4. Reforço: Essa percepção distorcida da realidade cria uma demanda ainda maior por esse tipo de conteúdo, que valida as crenças pré-existentes dos espectadores e incentiva os criadores a produzirem mais do mesmo. É um ecossistema fechado onde a precisão clínica é sistematicamente sacrificada em favor do engajamento viral, como resume a tabela abaixo.
Tabela 1 – Raio-X do Conteúdo #TDAH no TikTok (Dados de Karasavva et al., 2025)
| Métrica | Resultado |
| Métrica de Popularidade: Total de Visualizações (90 vídeos) | ~496 milhões |
| Métrica de Precisão: % de Alegações Alinhadas com o DSM-5 | 48,7% |
| Fonte da Imprecisão: % de Alegações Incorretas Classificadas como “Experiência Humana Normal” | 68,5% |
| Métrica de Credenciais: % de Criadores com Formação em Nível de Doutorado (PhD/MD) | 0% |
| Métrica de Motivação: % de Criadores com Incentivo Financeiro Explícito | 50% |
2 A “ASTROLOGIA DA PSICOPATOLOGIA”: DESVENDANDO O EFEITO BARNUM
Para entender por que um conteúdo tão frequentemente impreciso é tão amplamente aceito e celebrado, precisamos olhar para além dos algoritmos e explorar a psicologia humana. Um dos mecanismos mais poderosos em jogo é um viés cognitivo conhecido como Efeito Barnum, que transforma descrições genéricas em revelações pessoais, criando o que pode ser chamado de uma “astrologia da psicopatologia”.
2.1 O que é o Efeito Barnum (ou Efeito Forer)?
O Efeito Barnum, também conhecido como Efeito Forer, descreve a tendência psicológica de indivíduos aceitarem descrições de personalidade vagas, genéricas e geralmente positivas como se fossem análises precisas e feitas sob medida para eles. O nome é uma referência a P.T. Barnum, o famoso showman que afirmava ter “algo para todos”. O exemplo mais clássico desse efeito é a forma como as pessoas leem seus horóscopos: uma declaração como “Você tem uma grande necessidade de que outras pessoas gostem e admirem você” soa profundamente pessoal, embora se aplique a praticamente toda a humanidade.
Este efeito não ocorre por acaso; ele é potencializado por uma combinação de fatores psicológicos. Primeiro, a crença na autoridade da fonte: as pessoas são mais propensas a aceitar a descrição se acreditam que ela vem de uma fonte confiável, seja um astrólogo, um “teste de personalidade” ou, no nosso caso, um criador de conteúdo que se posiciona como um especialista por “experiência vivida”. Segundo, a natureza majoritariamente positiva das declarações: somos mais receptivos a feedbacks que nos enaltecem. Terceiro, a ambiguidade: as declarações são vagas o suficiente para permitir que cada pessoa projete suas próprias experiências e significados nelas, tornando-as “suas”. Por fim, a ilusão de personalização: o algoritmo do TikTok, ao entregar um vídeo “para você”, cria a sensação de que aquela informação foi selecionada especificamente para o indivíduo, aumentando sua credibilidade percebida.
2.2 O TDAH como Horóscopo: Aplicando o Efeito na Prática
O conteúdo viral sobre TDAH é um terreno fértil para o Efeito Barnum. Declarações como “Você é uma pessoa extremamente criativa, mas se entedia facilmente com tarefas repetitivas” ou “Às vezes você tem dificuldade de se concentrar, mas consegue hiperfocar em coisas que te interessam” são exemplos perfeitos de afirmações Barnum. Elas são verdadeiras para um grande número de pessoas, com ou sem TDAH, mas são apresentadas como marcadores diagnósticos específicos. A pessoa que se identifica com a afirmação sente uma conexão imediata e uma sensação de “aha!”, acreditando ter encontrado uma peça-chave para entender a si mesma.
Um ingrediente crucial para que o Efeito Barnum funcione com máxima eficácia é a falta de nuance, um dos achados mais significativos do estudo de Karasavva et al. A pesquisa revelou que apenas 4,1% dos vídeos analisados continham qualquer tipo de ressalva, como reconhecer que a característica mostrada poderia não se aplicar a todas as pessoas com TDAH, ou que também poderia ocorrer em pessoas sem o transtorno. Essa ausência de nuance é deliberada ou não, mas seu efeito é o mesmo: ela remove as ambiguidades que poderiam levar à reflexão crítica. Sem ressalvas, a declaração se torna uma verdade absoluta e universalmente aplicável, o que a torna psicologicamente mais poderosa e mais difícil de questionar.
É fundamental entender que o Efeito Barnum não funciona apenas porque as pessoas são “crédulas” ou ingênuas. Ele é eficaz porque explora uma das necessidades psicológicas mais profundas do ser humano: o desejo de ser visto, compreendido e validado. Indivíduos que suspeitam ter TDAH, ou que já vivem com o diagnóstico, frequentemente carregam uma longa história de se sentirem diferentes, “errados”, preguiçosos ou incompreendidos por seus pares, familiares e até por profissionais. A busca por um diagnóstico é, em sua essência, uma busca por uma narrativa que explique e valide suas lutas internas.
Nesse contexto, um vídeo de 30 segundos no TikTok que descreve um comportamento familiar e o rotula como “coisa de TDAH” oferece uma dose instantânea e potente de validação. A reação emocional é de alívio e reconhecimento: “Finalmente! Alguém entende. Eu não sou o único. Não sou louco(a)”. O sentimento de ser “visto” é genuíno e poderoso. A armadilha, no entanto, reside na base dessa validação. Enquanto a emoção é real, a premissa de que aquele comportamento específico é um marcador diagnóstico exclusivo do TDAH é, como os dados mostram, frequentemente falsa. O conteúdo oferece o alívio emocional da validação sem a precisão e o rigor do diagnóstico clínico, criando uma “astrologia da psicopatologia”: algo que parece pessoal, é emocionalmente satisfatório, mas é cientificamente vazio.
3 “CONCEPT CREEP”: A DILUIÇÃO PERIGOSA DO TDAH
Além do apelo psicológico do Efeito Barnum, há um processo social e cultural mais amplo em andamento que contribui para a banalização do TDAH: o “concept creep” ou deslizamento conceitual. Este fenômeno descreve como as definições de conceitos relacionados a patologias e danos se expandem ao longo do tempo, tornando-se cada vez mais inclusivas e, consequentemente, menos precisas.
3.1 Apresentando a Teoria do “Concept Creep”
A teoria do “concept creep” foi desenvolvida pelo psicólogo australiano Nick Haslam para descrever uma tendência observada em vários conceitos psicológicos, como abuso, bullying, trauma e transtorno mental. Ele argumenta que, ao longo das últimas décadas, esses conceitos expandiram seus significados de duas maneiras principais:
1. Creep Vertical (Expansão para Baixo): Ocorre quando o limiar para o que é considerado patológico ou prejudicial é rebaixado. O conceito passa a incluir versões quantitativamente mais leves ou menos severas do fenômeno original. Por exemplo, o que antes era considerado um conflito interpessoal pode hoje ser rotulado como “bullying”.
2. Creep Horizontal (Expansão para os Lados): Acontece quando o conceito se estende para abranger fenômenos qualitativamente novos, que antes não faziam parte de sua definição. Por exemplo, o conceito de “trauma” expandiu-se para além de ameaças diretas à vida para incluir também eventos testemunhados ou experiências emocionalmente dolorosas.
Essa expansão semântica não é necessariamente negativa; ela pode refletir uma maior sensibilidade social ao sofrimento e à injustiça. No entanto, quando não é acompanhada de rigor, pode levar à diluição do significado original dos conceitos, tornando-os menos úteis clinicamente.
3.2 O “Concept Creep” do TDAH em Ação
O TDAH é um exemplo paradigmático de um conceito que está sofrendo um intenso “concept creep”, especialmente no ambiente digital. Podemos observar claramente as duas formas de expansão:
Exemplo de Creep Vertical: Dificuldades comuns e não incapacitantes, como procrastinar para iniciar uma tarefa chata, perder as chaves ocasionalmente ou sentir-se desorganizado em um ambiente de trabalho sobrecarregado, são frequentemente apresentadas em vídeos como “sintomas de TDAH”. O critério fundamental do DSM-5, que exige que os sintomas causem prejuízo clinicamente significativo e persistente em múltiplos domínios da vida (social, acadêmico, profissional), é convenientemente omitido. A barra para o que constitui um sintoma de TDAH é rebaixada para incluir experiências normais.
Exemplo de Creep Horizontal: Conceitos que não são critérios diagnósticos formais, como a “Disforia Sensível à Rejeição” (DSR), são frequentemente apresentados online como sintomas centrais e definidores do TDAH. Embora a desregulação emocional seja uma característica associada comum, elevá-la ao status de sintoma nuclear expande horizontalmente o conceito de TDAH para o campo da regulação do humor de uma forma que pode ofuscar os critérios centrais e definidores de desatenção e hiperatividade/impulsividade.
Essa expansão é ativamente alimentada pelo ecossistema das redes sociais. Definições mais amplas e mais inclusivas tornam o conteúdo mais “relacionável” para um público maior, o que, por sua vez, gera mais engajamento, mais visualizações e mais popularidade para os criadores de conteúdo.
Este processo leva a uma consequência clínica preocupante: a inversão do funil diagnóstico. Na prática clínica, o diagnóstico é um processo de afunilamento. Um clínico parte da população geral e aplica critérios rigorosos — como início na infância, persistência ao longo do tempo, presença em múltiplos contextos, prejuízo funcional significativo e exclusão de outras condições médicas ou psiquiátricas que poderiam explicar melhor os sintomas. Ao final desse processo, chega-se a um grupo específico que atende aos critérios para o transtorno, estimado em cerca de 3-7% da população adulta.
As redes sociais, impulsionadas pelo “concept creep”, invertem completamente esse funil. Elas começam com uma definição extremamente ampla, diluída e atraente de TDAH e a aplicam a milhões de pessoas. O resultado, como visto nos dados do estudo de Karasavva et al., é uma população enorme de indivíduos que se autodiagnosticam. Isso cria uma pressão sem precedentes sobre os profissionais de saúde. Os pacientes não chegam mais ao consultório perguntando “Doutor(a), será que eu tenho TDAH?”. Eles chegam afirmando: “Eu tenho TDAH, vi no TikTok, e quero uma receita”. O papel do clínico, então, se transforma. Além de diagnosticar, ele agora precisa, muitas vezes, “des-diagnosticar”, explicando pacientemente a diferença crucial entre traços de personalidade, dificuldades normais da vida moderna e um transtorno do neurodesenvolvimento com bases biológicas que causa prejuízo real. Este processo pode gerar atrito, desconfiança e minar a aliança terapêutica, que é a base de qualquer tratamento bem-sucedido.
4 A CONSEQUÊNCIA FINAL: A INVALIDAÇÃO DO SOFRIMENTO CLÍNICO
A convergência da desinformação viral, da sedução psicológica do Efeito Barnum e da diluição conceitual do “concept creep” culmina em uma consequência final, a mais danosa de todas: a banalização do TDAH e a subsequente invalidação do sofrimento daqueles que vivem com a forma clínica e incapacitante do transtorno.
4.1 Da Banalização à Invalidação
Quando o TDAH é consistentemente retratado online como uma coleção de “peculiaridades” (quirks) fofas, memes relacionáveis, ou até mesmo “superpoderes” de criatividade e hiperfoco, o elemento central que define um transtorno psiquiátrico é sistematicamente apagado da conversa pública. Esse elemento é o sofrimento e o prejuízo funcional significativo. Um diagnóstico não é um rótulo de identidade ou um clube social; é o reconhecimento de que um conjunto de sintomas está causando um impacto negativo e persistente na capacidade de um indivíduo de funcionar em áreas essenciais da vida. Ao focar exclusivamente nos aspectos “relacionáveis” e minimizar ou ignorar o prejuízo, a narrativa digital transforma um transtorno médico em um traço de personalidade da moda.
Essa banalização tem um efeito direto e devastador sobre a experiência de quem vive com as formas moderadas a graves do TDAH. Para o jovem adulto que foi demitido de múltiplos empregos devido à sua desatenção severa e incapacidade de cumprir prazos; para a mãe que luta contra uma impulsividade que prejudica suas relações com os filhos e o cônjuge; para o estudante universitário brilhante que abandona o curso porque sua disfunção executiva o impede de organizar e completar os trabalhos — para eles, o TDAH não é um meme. É uma fonte diária e implacável de dor, frustração, fracasso e vergonha.
Quando essas pessoas veem seu transtorno sendo tratado como uma trivialidade online, a mensagem que recebem, implícita ou explicitamente, é que seu sofrimento não é real ou não é levado a sério. Essa invalidação externa pode facilmente se transformar em auto-invalidação. O paciente pode começar a se perguntar: “Se o TDAH é só isso, por que eu sofro tanto? Por que eu não consigo simplesmente ‘usar meu hiperfoco’ para resolver meus problemas como os influencers parecem fazer? Talvez o problema seja eu. Talvez eu seja apenas preguiçoso(a) ou incompetente”. Além disso, essa desinformação pode afastar as pessoas de tratamentos com eficácia comprovada, como a terapia cognitivo-comportamental e a medicação, em favor de soluções anedóticas ou produtos vendidos pelos próprios criadores de conteúdo, conforme identificado no estudo.
Isso nos leva a um profundo “paradoxo da visibilidade”. O TDAH, como tópico, nunca foi tão visível. A hashtag #ADHD acumula bilhões de visualizações, e a “conscientização” sobre o tema parece estar em seu auge histórico. No entanto, essa visibilidade pode ser uma miragem. O que está sendo visto e celebrado é uma versão higienizada, romantizada e fundamentalmente diluída do transtorno. A face do TDAH que envolve fracasso acadêmico, instabilidade profissional, divórcio, comorbidades severas como ansiedade e depressão, e o prejuízo real e diário, permanece, paradoxalmente, cada vez mais invisível dentro dessa explosão de visibilidade superficial.
A consequência social disso é alarmante. A sociedade em geral, exposta a essa narrativa banalizada, pode começar a pensar: “Se o TDAH é isso, por que essas pessoas precisam de adaptações na escola ou no trabalho? Por que precisam de medicação controlada? Parece que todo mundo tem um pouco disso”. A luta por direitos, reconhecimento e acesso a tratamento adequado, que a ABDA e outras organizações travaram por décadas, corre o sério risco de ser minada pela própria popularidade superficial do tema que pretendiam promover.
CONCLUSÃO: RUMO A UM CONSUMO CRÍTICO E AO FORTALECIMENTO DO PACIENTE
A análise do cenário digital em torno do TDAH nos obriga a reafirmar uma verdade fundamental: a experiência vivida e a expertise clínica não são forças opostas, mas papéis complementares e distintos. A partilha de experiências pessoais é insubstituível para a criação de comunidade, para o combate ao isolamento e para o apoio emocional entre pares. No entanto, ela não substitui, e não pode substituir, o conhecimento técnico e o rigor metodológico da expertise clínica, que são essenciais para um diagnóstico preciso, um plano de tratamento individualizado e seguro, e a navegação das complexidades do transtorno.
Em meio a um cenário tão preocupante, o estudo de Karasavva et al. oferece um vislumbre de esperança e um caminho a seguir. Em um dos experimentos mais reveladores, após serem expostos a vídeos sobre TDAH, os participantes tiveram a opção de assistir a um vídeo adicional, no qual um psicólogo especialista explicava a ciência por trás do conteúdo e por que certos vídeos eram bons ou maus exemplos de psicoeducação. O resultado foi notável: mais da metade de todos os participantes (51,4%) escolheu voluntariamente assistir ao vídeo do especialista. Essa proporção foi ainda maior entre aqueles com diagnóstico formal (62,4%) e com autodiagnóstico (52,3%).
Este dado é crucial. Ele demonstra que, apesar da avalanche de conteúdo leigo e sensacionalista, existe uma sede genuína por informação de qualidade, baseada em evidências e proveniente de fontes credíveis. O público não é meramente passivo; ele está, ativamente, buscando orientação confiável. Isso nos mostra que o caminho não é o da proibição ou da censura, mas o do empoderamento através do conhecimento.
Para auxiliar a comunidade ABDA nessa jornada, propomos uma lista de verificação simples, um conjunto de ferramentas para o consumo crítico de conteúdo online sobre TDAH:
1. Verifique as Credenciais: Quem está falando? É um médico, psicólogo ou outro profissional de saúde qualificado, ou é alguém compartilhando exclusivamente uma experiência pessoal? Lembre-se que experiência vivida é valiosa para apoio, mas não para diagnóstico ou recomendação de tratamento.
2. Procure a Nuance: O conteúdo reconhece que o TDAH é um espectro e que nem todas as pessoas com o transtorno são iguais? Ele menciona que os sintomas apresentados podem ter outras causas ou também ocorrer em pessoas sem TDAH? A ausência de nuance é um grande sinal de alerta.
3. Diferencie “Relacionável” de “Clínico”: Ao se deparar com um comportamento descrito, pergunte-se: “Isso é apenas algo com o qual eu me identifico de vez em quando, ou é um padrão que causa prejuízo real, significativo e persistente na minha vida, no meu trabalho, nos meus estudos ou nos meus relacionamentos?”. A diferença entre identificação e prejuízo é a fronteira entre a normalidade e a clínica.
4. Cuidado com as Soluções Mágicas: Desconfie profundamente de qualquer conteúdo que ofereça curas fáceis, soluções universais ou produtos milagrosos, especialmente se estiverem à venda pelo próprio criador do conteúdo. O tratamento do TDAH é complexo, multimodal e individualizado.
A mensagem final para a nossa comunidade é de fortalecimento. O conhecimento é a ferramenta mais poderosa que possuímos contra a maré da desinformação. Ao nos armarmos com o pensamento crítico, podemos aprender a extrair o melhor que o mundo digital tem a oferecer — a comunidade, o apoio e a validação do sentimento de não estar só — enquanto nos protegemos de seus perigos. Fazendo isso, garantimos que a narrativa sobre o TDAH seja guiada pela ciência, pela compaixão e, acima de tudo, pela verdade do sofrimento validado e da resiliência de cada um de nós.
REFERÊNCIAS
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Artigo escrito por Dr. Rodrigo Nogueira Borghi
Médico Psiquiatra – CRM 138.816-SP
Especialista em Psiquiatria e Psicofarmacologia, com residência pelo IMAS Juliano Moreira e UNICAMP, Preceptoria no Massachusetts General Hospital – Harvard Medical School, Columbia University Medical School e Universidade de Siena (Itália). Membro da American Psychiatric Association (APA), Neuroscience Education Institute (NEI Global), ADHD World Federation, European College of Neuropsychopharmacology (ECNP) e Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), onde atua como Coordenador do Conselho Editorial e Membro do Conselho Científico. Atua como docente no Instituto Brasileiro de Farmacologia Clínica (BIPP) e, preceptor da Residência Médica em Psiquiatria da Faculdade São Leopoldo Mandic – Araras.
