ENTENDENDO A HEREDITARIEDADE DO TDAH

Paulo Mattos

Quando se diz que uma determinada doença tem forte influência da hereditariedade, isto não significa que encontraremos muitos casos na família de cada um dos pacientes com o diagnóstico. Apenas quando avaliamos centenas ou milhares de pacientes, vemos que existe uma proporção maior de familiares acometidos do que o esperado matematicamente. Quando falamos em risco genético, portanto, estamos falando em probabilidade matemática. No caso da esquizofrenia, um histórico familiar positivo é considerado o maior fator de risco para desenvolver a doença. Mas nem todo paciente com esquizofrenia tem um parente com a mesma doença.

Além disso, existe uma interação entre nossos genes e o ambiente (envolvendo desde nossa alimentação, nosso grau de escolaridade e nível socioeconômico, até eventos traumáticos). Chama-se a isto de GxE (gene X environment) e sabemos que não é restrito a transtornos psiquiátricos: por exemplo, o câncer de intestino sofre influência genética bastante significativa, mas o aparecimento dele parece depender do estilo de vida e da alimentação do indivíduo. O estudo sobre a complexa relação GxE é chamado de epigenética. O ambiente pode modificar o “comportamento” de nosso DNA, nosso código genético, “liberando” ou “bloqueando” certos genes. Hoje em dia sabemos que muitos eventos adversos durante a infância, como maus tratos e negligência, por exemplos, têm impacto negativo no desenvolvimento do nosso cérebro; estes efeitos são modulados, entretanto, pela nossa genética (aumentando ou diminuindo as chances de isto acontecer).

No caso do TDAH, não existe um único gene, como ocorre em algumas doenças (por exemplo, no Huntington, uma doença neurológica, existe um gene específico que os indivíduos sem a doença não possuem no seu DNA). Nos estudos de transtornos psiquiátricos, como o TDAH, via de regra não falamos em “gene” no sentido tradicional, mas sim em “variantes” de genes que todos nós temos (common genetic variants). Explicando melhor: os indivíduos na população têm um “gene A” com a seguinte composição “X-Y-Z-2”, por exemplo. Alguns poucos indivíduos tem a composição “X-Y-W-2” do mesmo “gene A” (com o W no lugar do Z), ou seja, existe uma variação ou variante daquele gene, mas todos têm o mesmo “gene A”. Apenas muito raramente existem genes específicos (e não variantes) que se associam com casos esporádicos de TDAH. Como nos demais mamíferos, os nossos genes estão sempre localizados nos mesmos locais no nosso DNA e cada gene, por sua vez, tem vários locais diferentes dentro dele. Atualmente, os geneticistas têm um “mapa” destes locais. Sabemos que existem locais especificamente relacionados ao sistema gastrointestinal, ao sistema nervoso, aos rins, etc.

Nos estudos investigando a genética do TDAH, descobrimos que existem diversas variantes associadas ao transtorno, não existe uma “única” variante; o mesmo ocorre com outros transtornos com forte influência genética, como o Autismo, a Esquizofrenia e o Transtorno de Humor Bipolar. Por isso, nos estudos de genética usamos o chamado “escore poligênico” (poli=muitos) que diz respeito ao número total de variantes que o indivíduo possui; quanto maior o escore, maior o número de variantes associadas ao TDAH. Estas variantes podem ocorrer em diferentes locais de um ou mais genes. Por isso, os artigos sobre genética também falam em “loci” (“locais”, em latim), isto é, onde estão localizadas estas variantes no “mapa” do nosso DNA.

O maior estudo sobre genética do TDAH, com mais de 20.000 pacientes com TDAH e 35.000 controles (indivíduos sem TDAH, para fins de comparação), publicado em dezembro de 2018 mostra que existem 12 loci, envolvendo diferentes genes, relacionados com o TDAH. Todos estes loci estão relacionados ao sistema nervoso central. Mais ainda, este loci também estão relacionados com outros transtornos psiquiátricos (que sabemos ocorrer com maior frequência no TDAH), como a depressão. Estes loci também estão relacionados com problemas clínicos, como a obesidade, que também é mais frequente no TDAH. Uma das importantes conclusões deste estudo foi que a análise genética só foi capaz de explicar uma parte pequena da hereditariedade do TDAH, que é bem alta como veremos adiante (o mesmo ocorre com os demais transtornos psiquiátricos mencionados). Isto ocorre porque o risco genético depende da interação com fatores ambientais, como vimos antes, para “resultar” num quadro de TDAH. Mais ainda, é muito provável que existam outros genes que estejam regulando à distância (para mais ou para menos) a ação destas variantes encontradas. Este estudo, o maior até agora sobre genética do TDAH, publicado na revista Nature Genetics, juntamente com o maior estudo sobre alterações neuroanatômicas do TDAH (usando ressonância magnética), publicado em 2017 na revista Lancet, do qual participei, deixam claro: ele não é uma doença inventada.

Nos estudos científicos com a população geral, sabemos que quanto maior o escore poligênico (número calculado de acordo com a análise genética dos pacientes) maior o número de sintomas de TDAH (são 18 sintomas no total). Este achado reforça a ideia de elevada “herdabilidade” no TDAH. Importante: embora este índice seja útil nos estudos sobre genética, ele não tem qualquer utilidade para o diagnóstico na prática clínica, porque ele não é capaz de predizer matematicamente quem tem e quem não tem TDAH. Não existem testes genéticos para o TDAH até o momento (o mesmo ocorre com vários transtornos psiquiátricos e doenças clínicas). Outro aspecto importante: embora existam empresas que vendam kits para determinar qual o melhor medicamento para tratar transtornos neuropsiquiátricos (como depressão, psicose e TDAH), baseando-se na genética do paciente, o seu uso foi oficialmente e fortemente desaconselhado pelo FDA (Food and Drug Administration, órgão regulador americano) em 2018, porque o embasamento científico é quase nenhum. Nós não temos dados suficientes para correlacionar o efeito de medicamentos com nosso perfil genético.

Os estudos científicos sobre o TDAH investigando irmãos gêmeos, crianças adotadas e famílias em diferentes regiões do mundo (em todos os cinco continentes) mostram que a “herdabilidade” do TDAH encontra-se entre 70 e 80%. Estes estudos investigam a presença do diagnóstico nos indivíduos e nos informam sobre a elevada participação genética, mas são diferentes daqueles estudos que investigam diretamente o DNA, descritos anteriormente. Por exemplo, se crianças adotadas têm a mesma proporção de TDAH que sua família biológica, mas não a sua família adotiva, este resultado aponta para o risco genético.

Os estudos de genética demonstram que o TDAH é o extremo de traços encontrados na população em geral, do mesmo modo que o diabetes é o extremo da “quantidade de açúcar” que todos nós temos em algum grau (uns mais, outros menos, outros muito mais). Portanto, poderíamos dizer que não se trata de “ter ou não ter TDAH”, mas simplesmente de “quanto” TDAH cada um de nós tem (o mesmo raciocínio vale para diabetes, hipertensão arterial, glaucoma, colesterol, etc.). Chamamos a isto de uma doença “dimensional”, em oposição às doenças “categoriais” (aquelas em que ou nós “temos” ou “não temos” um certo diagnóstico, como câncer, HIV, etc.).

Ter TDAH significa ter um número maior de sintomas que os demais, algo que se associa a uma série de problemas na vida. E isto está relacionado principalmente, mas não exclusivamente, com nossa genética.

 

Click no link para ler a pesquisa publicada na Revista Cientifica Nature, que identificou os 12 genes envolvidos na hereditariedade do TDAH

https://www.nature.com/articles/s41588-018-0269-7

 

Escrito por Paulo Mattos – Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Presidente do Conselho Cientifico da ABDA