Antes de chegar ao diagnóstico do filho, os pais de crianças portadoras do TDAH enfrentam uma verdadeira jornada por escolas, consultórios e centros médicos. O périplo é desgastante e atrasa o início do tratamento correto.

Por Rafael Alves Pereira

 

A doença é pouco conhecida do grande público e ainda não faz parte daquelas úteis cartilhas que pais e mães recebem nos consultórios pediátricos. “Como tratar um resfriado” e “Doenças mais comuns em crianças” são títulos facilmente encontrados por quem está acostumado a folhear publicações e revistas especializadas na saúde e no bem-estar da criança que abarrotam bancas de jornal e salas de espera de médicos. É raro encontrar, no entanto, alguma menção ao Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Mas provavelmente, você que sempre vai buscar seu filho na escola, fica esperando-o na salinha do dentista ou vai levá-lo à festinha do amigo do condomínio já deve ter visto uma criança com o problema. O menino não para quieto um minuto, está sempre agitado. Corre, pula, vai de um lado para o outro, fala alto e é muito, muito impaciente e ansioso. Tentando controlar esse verdadeiro dínamo infantil está um pai ou uma mãe pra lá de constrangido e sem saber o que fazer. Há ainda a possibilidade de você ser o pai ou a mãe co-protagonista desta cena bastante comum em ambientes com grande aglomeração de crianças.

O comportamento descrito é típico de um menino portador do TDAH. No sexo masculino o problema tem um forte predomínio de características hiperativas e impulsivas. Não conseguir aguardar seu lugar na fila, responder antes de o professor terminar a pergunta e ficar ansioso nos momentos em que é necessário permanecer quieto e concentrado por muito tempo são outros sintomas tradicionais. Não é difícil deduzir que nesses casos a criança se torna capaz de alvoroçar qualquer lugar por onde passe, desde a sala de aula até a pracinha na esquina de casa.

Já nas meninas o tipo mais comum é a forma desatenta. Como o próprio nome já diz, há um predomínio de problemas como desatenção crônica, esquecimentos e falhas de memória. Elas não prestam atenção a detalhes e cometem erros por descuidos bobos. As meninas com TDAH, pela peculiaridade da manifestação da doença, não “incomodam” tanto quanto os rapazes, o que faz com que o diagnóstico seja mais difícil. As estatísticas nos consultórios médicos mostram que há, diagnosticados ou em tratamento, dois meninos para cada menina. Os médicos acreditam que as meninas sejam subdiagnosticadas. O que motiva os pais a procurarem tratamento médico para o filho, via de regra, são os problemas de comportamento e a agitação típica dos meninos com TDAH, porém menos presentes nas meninas.

O início da via-crúcis

Na verdade, chegar ao diagnóstico correto do problema costuma ser uma aventura nada agradável. Tanto pais quanto filhos passam por maus momentos que chegam a desestabilizar a família e até mesmo comprometer o desenvolvimento da criança.

Os primeiros sinais sérios de que alguma coisa está fora dos eixos vem da escola. Seria mais fácil se o TDAH implicasse apenas em obrigar os pais a ter mais jogo de cintura para contornar situações constrangedoras em público. Mas o transtorno, como o próprio nome já diz, compromete a capacidade de atenção e dificulta o aprendizado. E o banco da escola é o lugar onde as deficiências da criança ficam mais notórias. Raramente preparados para lidar com a criança portadora de TDAH, professores com freqüência se referem a alguns alunos dizendo que Joãozinho “tem bicho-carpinteiro no corpo”, que Mariazinha vive no “mundo-da-lua” ou coisas do tipo. Esses comentários ilustram bem o comportamento das crianças com TDAH.

Os professores reclamavam que ele não parava quieto, que não deixava a turma tranqüila e que atrapalhava a aula – lembra a dona-de-casa Sônia da Costa, mãe de Carlos, hoje com 11 anos. Como os colégios raramente têm um profissional capacitado para lidar com crianças hiperativas, há professor que lança mão de soluções nada pedagógicas para contornar o problema:

Quando meu filho estava na primeira série, a professora o colocava para fora da sala e o deixava no corredor do colégio durante todo o tempo da aula. Eu e o meu marido só soubemos disso no meio do ano, graças ao alerta de uma faxineira – lembra Sônia.

Exames, exames e mais exames

Esse foi o primeiro aviso de que alguma coisa séria estava errada e de que algo precisava ser feito. Começou assim, como em muitas outras famílias, a saga dos pais até descobrir qual era o problema do filho e tratá-lo adequadamente.

Quando o nosso filho começou a apresentar problemas na escola, resolvemos procurar ajuda profissional. Levamos a todo tipo de médico, de cardiologistas a neurologistas. Foram uns dez médicos diferentes. Fazíamos exames e mais exames e não dava em nada – conta a advogada Denise Silveira.- Eu e meu marido começamos a ficar muito angustiados. Sabíamos que havia algo errado, mas não conseguíamos descobrir o que era.

O psiquiatra Ênio Andrade, que coordena o Ambulatório de TDAH infantil do Instituto de Psiquiatria que funciona no Hospital das Clínicas de São Paulo, explica que um exame médico tradicional não detecta o transtorno.

– A análise que fazemos para diagnosticar a doença é comportamental. Verificamos se a criança apresenta os sintomas de hiperatividade, impulsividade e desatenção características. Como o TDAH possuiu um fator de hereditariedade, sempre procuramos ver se um dos pais, ou mesmo os dois, também apresentam o TDAH – esclarece o Dr. Ênio.

Mas por quê o meu filho precisaria de um psiquiatra?

No início acreditava-se que o problema acometia somente as crianças, tendendo a desaparecer na infância e na adolescência. Atualmente, sabe-se que o portador carrega a doença por toda a vida e precisa aprender a controlá-la. O fato de os sintomas serem amenizados na idade adulta leva muita gente a minimizar o problema e achar que o TDAH não passa de “uma fase” na vida da criança. Os pais que pensam dessa forma julgam que procurar tratamento médico não é necessário. Principalmente se o médico em questão for um psiquiatra.

A família procura primeiro o pediatra, que em geral não está preparado para diagnosticar problemas mentais e comportamentais de uma criança. Ele então encaminha para um neurologista ou para um psicólogo. Ou vice-versa E só no final, quando ninguém conseguiu resolver o problema, levam ao psiquiatra. É o último recurso. – relata Ênio Andrade. Ele explica que em seu consultório cerca de 20% de seus pacientes chegam por indicação da escola ou de um neurologista depois de já terem passado por diversos médicos. Os outros 80% já chegam por lá autodiagnosticados, após terem lido uma reportagem, matéria ou notícia sobre o assunto em algum jornal ou revista.

Cheguei à conclusão de que, para informar as pessoas sobre o TDAH, é melhor investir na mídia – brinca o médico.

Foi exatamente assim que o analista de sistemas Miguel Nascimento chegou ao diagnóstico da sua filha. Depois de ter passado pela aventura de trocar a menina de escola diversas vezes, além de fazer terapia com uma psicóloga durante um ano sem qualquer efeito, ele teve a sorte de ler uma matéria sobre o assunto.

Peguei o jornal pela manhã e no caderno de saúde vi uma reportagem sobre TDAH. Fiz rapidamente um teste proposto e vi que minha filha se encaixava na descrição. Marquei a consulta com um psiquiatra para o mesmo dia. Até então a gente não conseguia entender o comportamento da Gabriela. Essas crianças com TDAH são muito inteligentes e criativas, e quando empacam em alguma coisa a gente não entende porquê.

Alívio com o início do tratamento

A descoberta do diagnóstico correto é sempre um alívio. Com o tratamento adequado e o uso dos medicamentos corretos, a melhora no comportamento das crianças é imediata.

Depois que começou o tratamento com o psiquiatra, o meu filho melhorou muito. – conta Sônia, a mesma que descobriu que seu filho passava mais tempo no corredor do colégio do que na sala de aula. Por causa dos problemas causados pelo TDAH, Carlos, que é paciente do Dr. Ênio Andrade, fez duas vezes a primeira série do ensino fundamental e depois precisou voltar para o pré-escolar. Só então o TDAH foi diagnosticado e a sua vida escolar foi normalizada.- Ele sabe ler e escrever e está na segunda série – comemora a dona-de-casa, que viveu momentos de angústia antes de chegar ao diagnóstico correto.

A gente se sentia culpado. O que será? O que aconteceu? Será que sou eu? A gente pensava que era por que nós somos muito rígidos e não o deixávamos fazer muita traquinagem, fazer bagunça – lembra a dona-de-casa. Quando o TDAH está envolvido, é comum que os pais passem por um momento de questionamento como esse. Os problemas com a criança existem e se manifestam no comportamento diário e nas dificuldades na escola, mas ninguém consegue descobrir o quê é. Depois de enfrentar um verdadeiro périplo por consultórios médicos e não conseguir uma resposta satisfatória, o tipo de educação e de ambiente familiar dado à criança passam a ser questionados pelos pais. É uma atitude semi-desesperada de quem já não sabe a quem, ou a quê, recorrer.

-Não dava para sair, ir à casa de outras pessoas. Ele só faltava subir pelas paredes. A gente deixou de ir a lugares por causa disso. Eu e meu marido discutimos várias vezes por causa dos problemas com nosso filho. Ele achava que o menino era preguiçoso, que eu não dava limites – recorda a secretária Maria Helena Pedroso. Nas discussões, o pai usava um argumento derradeiro:

– Ele dizia que quando pequeno também era preguiçoso e vivia no mundo-da-lua, mas que isso foi uma fase e passou. Ele afirmava que o filho tinha puxado ao pai – recorda Maria Helena.

Tratamento para toda a família

E puxou mesmo. Os dois são portadores de TDAH e agora estão em tratamento. No início foi difícil quebrar o ceticismo paterno, mas agora a família comemora os bons resultados do tratamento duplo. Tratamento, aliás, que se estende a todos os membros da casa.

– A gente costuma brincar dizendo que tratar TDAH é para a família toda, e não apenas para o portador. Não adianta dar um remédio para a criança se ela vai encontrar o mesmo ambiente familiar que não está adequado ao seu tipo de comportamento – destaca a dentista Christiane D’Angelo (leia depoimento na íntegra). Ela enfrentou a mesma via-crúcis de todos os outros pais citados nesta reportagem, e até precisou deixar de lado a profissão para poder se dedicar ao filho. Hoje é vice-presidente da ATODAH, a Associação de Apoio ao Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, e ajuda pais de primeira viagem a evitar os percalços da odisséia que ela viveu.

Em relação aos cuidados com a doença, médicos são unânimes e pais já devidamente escolados sabem na prática: a criança com TDAH precisa de bastante carinho e, principalmente, de paciência. Os pais devem ter calma para tolerar os arroubos e distrações característicos e procurar sempre incentivar a criança. É o mais clássico dos fundamentos da pedagogia infantil: elogiar bastante resultados e abordar com muita delicadeza as falhas. O quarto pode estar todo bagunçado. Os cadernos, uma desordem. A criança se esqueceu daquilo que você lhe disse há três minutos… Mas se ela conseguiu a proeza (sim, para um portador de TDAH isso é uma proeza) de ficar sentadinha por meia hora concentrada no dever de casa, você deve elogiá-la. E muito. Isso servirá de estímulo e vai ajudá-la a melhorar progressivamente. Além de também diminuir aos poucos a frustração de ser sempre aquele que recebe as broncas, quebra tudo na casa, não tira notas boas e ainda é chamado de o “fulaninho que vive no mundo-da-lua”.

Rafael Alves Pereira é jornalista formado pela PUC-Rio e trabalha atualmente na Rádio CBN. Ele escreve para a ABDA reportagens quinzenais, que trazem depoimentos de médicos e pacientes e têm o objetivo de oferecer mais informações sobre o TDAH para quem convive com o problema e para o público em geral. São abordados assuntos como o cotidiano do portador de TDAH, avanços médicos na área e o tratamento dos pacientes.