TDAH, Impulsividade e o Risco de Conflitos com a Lei: Uma Análise Esclarecedora
Francis Moreira da Silveira, MsC, Ph.D.
Médico Psiquiatra – Coordenador do Núcleo da ABFA do Leste de Minas Gerais
CRM MG 55307 RQE 44612/ 63110
Uma das angústias mais comuns entre familiares e pessoas com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é o medo de que a impulsividade, um dos sintomas centrais do transtorno, possa levar a consequências graves, incluindo problemas com a justiça.
Essa preocupação é válida e merece uma discussão séria e desmistificada.
O TDAH, especialmente quando não diagnosticado ou tratado adequadamente, é de fato um fator de risco para o envolvimento em condutas de risco e, em alguns casos, criminalidade. Este artigo visa esclarecer essa complexa relação, explicando como a psiquiatria forense e o sistema de justiça avaliam esses casos e, mais importante, reforçando o papel crucial do tratamento como a principal ferramenta de prevenção.
Entendendo a Conexão: Por Que o TDAH Aumenta a Vulnerabilidade?
O TDAH é um transtorno do neurodesenvolvimento cujos sintomas principais são um padrão persistente de desatenção, hiperatividade e impulsividade. É a impulsividade que atua como o elo mais direto com os comportamentos de risco.
Indivíduos com TDAH frequentemente apresentam:
- Dificuldade em inibir respostas imediatas: Agem sem pensar nas consequências.
- Problemas com planejamento a longo prazo: Focam no agora, ignorando os desdobramentos futuros de suas ações.
- Busca por gratificação instantânea: A dificuldade em adiar recompensas pode levar a escolhas imprudentes.
Essas características podem se manifestar em diversas áreas, desde infrações de trânsito e uso de substâncias psicoativas até o envolvimento em atividades criminosas, como furtos impulsivos.
É fundamental notar que o risco é significativamente amplificado pela presença de comorbidades, muito comuns no TDAH, como o Transtorno Opositivo Desafiador (TOD), o Transtorno de Conduta e o Transtorno por Uso de Substâncias. A combinação desses quadros cria um cenário de grande vulnerabilidade. Estudos confirmam que a prevalência de TDAH em populações carcerárias é muito superior à da população geral, sublinhando as graves consequências do transtorno quando não tratado.
O TDAH no Tribunal: Como a Justiça Avalia a Responsabilidade Penal?
Essa é a questão central. Ter o diagnóstico de TDAH não é uma “carta branca” para a isenção de responsabilidade. O sistema legal brasileiro, através da perícia psiquiátrico-forense, analisa a culpabilidade do indivíduo com base em dois pilares fundamentais:
- Capacidade de Entendimento: A pessoa tinha consciência de que seu ato era ilegal e moralmente errado? Ela compreendia a natureza criminosa do que estava fazendo?
- Capacidade de Determinação (ou Autodeterminação): Mesmo sabendo que era errado, a pessoa tinha a força de vontade e o controle sobre seus impulsos para evitar cometer o ato?
No TDAH, a capacidade de entendimento geralmente está preservada. O indivíduo sabe, por exemplo, que furtar é errado. O ponto de maior debate e complexidade reside na capacidade de determinação. A impulsividade e o déficit no controle inibitório, característicos do transtorno, podem, em alguns casos, comprometer essa capacidade de resistir ao impulso criminoso.
O papel do perito psiquiatra não é decidir se a pessoa é culpada ou inocente — essa é uma decisão do juiz. A função do perito é fornecer um laudo técnico que responda a perguntas cruciais: o indivíduo tem um transtorno mental? Esse transtorno existia na época do delito? E, principalmente, como esse transtorno afetou suas capacidades de entendimento e determinação no momento exato do ato?
Um Caso Clínico para Ilustrar
Para tornar esses conceitos mais claros, vamos analisar um caso real adaptado de um estudo forense:
- O Paciente: Um jovem de 24 anos, solteiro e com ensino médio incompleto. Seu histórico desde a infância era marcado por intensa impulsividade, desatenção, agressividade e dificuldade em seguir regras, resultando em suspensões escolares e abandono dos estudos. Ele foi diagnosticado com TDAH aos 14 anos, mas nunca aderiu corretamente ao tratamento. Além disso, fazia uso esporádico de álcool e maconha e tinha registros de pequenos furtos.
- O Delito: Aos 23 anos, ele tentou furtar um aparelho eletrônico de forma totalmente impulsiva e sem planejamento, sendo rapidamente flagrado por câmeras e testemunhas. Em seu relato, ele afirmou: “Fiz sem pensar”, descrevendo um sentimento de tensão antes do ato, seguido de alívio e culpa imediata.
- A Avaliação Forense: O exame psiquiátrico confirmou o diagnóstico de TDAH persistente, com comportamento e fala desorganizados sob ansiedade. A análise forense concluiu que o núcleo do seu problema era um grave déficit no controle inibitório.
- A Conclusão Pericial: A perícia estabeleceu um nexo parcial entre o TDAH e o crime. Ou seja, a impulsividade do transtorno contribuiu para o ato, mas não eliminou completamente sua capacidade de escolha e autodeterminação. Como sua capacidade de entender que o ato era errado estava totalmente preservada, ele foi considerado imputável, ou seja, responsável criminalmente por suas ações. A recomendação, além da sanção penal, foi a de tratamento psiquiátrico e psicoterapêutico contínuo para prevenir a reincidência.
Além da Punição: Medida de Segurança e a Importância do Tratamento
O que acontece quando a perícia conclui que o transtorno mental afetou gravemente a capacidade de entendimento ou determinação? Nesses casos, o indivíduo pode ser considerado inimputável (totalmente incapaz) ou semi-imputável (parcialmente incapaz).
Para essas situações, o Código Penal prevê a Medida de Segurança, que não tem caráter de punição, mas sim de tratamento. Seu objetivo é cessar a periculosidade do indivíduo através de acompanhamento médico em regime de internação ou ambulatorial, visando à sua reintegração social.Contudo, o cenário ideal é intervir muito antes que o sistema judicial se faça necessário.
Tratamento é a Melhor Prevenção
A relação entre TDAH e criminalidade não é uma sentença, mas uma vulnerabilidade que precisa ser gerenciada. O caso clínico demonstra claramente que, mesmo em um ato marcadamente impulsivo, a responsabilidade penal pode ser mantida.
As evidências são robustas em apontar que a intervenção adequada e precoce sobre o transtorno é essencial para mudar esse desfecho, para isso as estampas abaixo são essenciais a esse processo:
- Diagnóstico e Tratamento Precoces: São as ferramentas mais eficazes para mitigar os riscos, modular a impulsividade e promover um desenvolvimento adaptativo.
- Adesão Contínua: O tratamento do TDAH (farmacológico e psicoterapêutico) não deve ser interrompido sem orientação médica, pois ele é fundamental para a estabilidade do comportamento.
- Integração entre Saúde e Justiça: É urgente que os sistemas de saúde mental e de justiça dialoguem para garantir que indivíduos com TDAH em conflito com a lei recebam uma avaliação justa e o tratamento necessário, em vez de apenas punição.
O reconhecimento e o tratamento adequados do TDAH não beneficiam apenas o indivíduo, melhorando sua qualidade de vida. Eles são uma questão de saúde pública, contribuindo para a redução da reincidência criminal e para a construção de uma sociedade mais segura e justa para todos.
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Francis Moreira da Silveira, MsC, Ph.D.
Médico Psiquiatra
CRM MG 55307 RQE 44612/ 63110
Especialista em Psicoterapia e Psiquiatria Forense. Mestre em Neurociências. Ph.D. em Ciências da Saúde pela UniLogos. International Fellow da American Psychiatric Association (APA). Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e da European Psychiatric Association. Perito Médico Auxiliar da Justiça (TJMG). Atua em Governador Valadares (MG), no Instituto Dr. Francis Silveira.