Muitas pessoas ainda resistem em aceitar que o Transtorno do Déficit de Atenção é de fato uma doença que precisa de tratamento, o que atrasa o diagnóstico e atrapalha o tratamento

Por Rafael Alves Pereira

”Durante muito tempo na minha vida eu me achava uma incapaz. Na escola e na faculdade, prestar atenção nas aulas era um martírio. Eu até conseguia me concentrar por alguns minutos, mas depois de um tempo eu começava, literalmente, a viajar. Olhava para roupa da professora e um desenho qualquer na estampa me fazia pensar em algum filme.Aí me lembrava que um amigo tinha me convidado para ir ao cinema naquela tarde e começava a me planejar para saber a que horas eu precisaria sair da faculdade para chegar a tempo e não deixá-lo na porta esperando. Aliás, também preciso passar na papelaria e comprar algumas coisas. Esse meu caderno está mesmo um pouco velho… Essa garota da carteira ao lado fez uma matéria comigo no semestre passado, não me lembro qual. É bonita essa caneta que ela esta usando, acho que vou ver se compro uma igual depois da aula… E quando eu me dava conta, a aula já tinha acabado, eu não tinha conseguido prestar atenção e nem tinha anotado nada”.

Esse relato é de uma fonoaudióloga que descobriu há alguns anos que seu comportamento, que era chamado de ”avoado” pelos amigos e parentes, na verdade, representa alguns dos sintomas clássicos de quem sofre do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, um distúrbio psiquiátrico que se caracteriza principalmente por desatenção crônica, impulsividade, dificuldade de concentração e problemas de memória.

Mas isso configuraria realmente uma doença a ponto de necessitar de medicamentos específicos e de um cuidadoso acompanhamento médico? Ou seria apenas uma característica da personalidade de algumas pessoas e, como tal, deveria ser compreendida e respeitada da maneira mais politicamente correta possível? Os médicos que tratam deste transtorno já se acostumaram a este tipo de questionamento por parte dos próprios pacientes e também de familiares.

– As pessoas normalmente só vão a um psiquiatra em último caso. E aceitar que apresentam um distúrbio que quase ninguém conhece é um passo ainda mais difícil para muita gente – explica o psiquiatra Ênio Andrade, da Universidade de São Paulo (USP). Ele conta que no centro de psiquiatria da criança e do adolescente coordenado por ele no Hospital das Clínicas da USP, vários pais levam seus filhos, começam a tratá-los e depois não voltam mais aos consultórios.

Falta de informação

– A falta de informação é bastante prejudicial para os pacientes e para as pessoas que convivem com eles. Na prática, é perceptível que quanto mais bem informadas as pessoas são, mais fácil é conseguir realizar um tratamento bem sucedido e evitar que o portador de TDAH sofra conseqüências bastante danosas para a sua vida, como o comprometimento da vida escolar, uma adolescência conturbada e com maior rico de incorrer no uso de drogas, e problemas de ordem conjugal e profissional – conta Ênio Andrade, que lembra que há uma diferença substancial nas pessoas com TDAH que procuram tratamento nos consultórios particulares e em unidades de atendimento gratuito, como no Hospital das Clínicas da USP.

– Quem pode pagar uma consulta particular normalmente já está mais bem informado sobre o problema. É comum que alguns pais já cheguem até mim com o diagnóstico quase pronto. Eles dizem que leram uma reportagem sobre o TDAH em algum jornal ou revista e que acreditam que esse é o problema do filho. Muitas vezes acertam. Para essas pessoas, que reconhecem que o TDAH é uma doença que precisa de tratamento, ajudar os filhos a seguir o tratamento é muito mais simples- explica o médico.

O TDAH pode se manifestar principalmente de duas maneiras. Uma é a modalidade hiperativa/impulsiva da doença, bastante comum nos homens. O sujeito age sempre de maneira muito intempestiva, não costuma pensar antes de agir ou falar e não raramente se arrepende das coisas que acaba fazendo no ”impulso”: seja comprar um carro novo sem consultar a esposa ou criticar de maneira nada cordial um companheiro de trabalho. Quando criança, o hiperativo é aquele que vira a sala de aula de pernas pro ar, deixa a pobre professora maluca e sempre vai parar na sala da diretoria. No caso das mulheres, a doença age de forma mais silenciosa. Nelas predomina a forma desatenta do TDAH, que apresenta o predomínio de sintomas como desatenção crônica, dificuldade de concentração, distração e esquecimentos. Ou seja, enquanto a professora está preocupada com o endiabrado rapazinho que não pára quieto, anda de um lado pro outro, agita a turma e bagunça a aula, a menina com TDAH só é lembrada na hora em que recebe as notas baixas ou quando se perde no meio de um exercício. E é bem provável que ela ouça por toda a vida que é muito distraída, pouco esforçada, que deveria se concentrar mais, que o baixo aproveitamento não passa de falta de força de vontade etc. É fácil supor que uma pessoa que apresenta um suposto ”traço de personalidade” que lhe gera tantos problemas tenha vontade de se livrar dele o quanto antes.

Mas é uma doença mesmo?

– Existem dois tipos de diagnósticos: o categorial e o dimensional. O primeiro é bem simples: ou a pessoas tem determinada doença ou não. Não existe meio termo; por exemplo hepatite. O diagnóstico dimensional é mais complexo. O TDAH é uma doença que faz parte deste tipo. Todos nós podemos apresentar características como impulsividade, distração ou se esquecer das coisas de vez em quando. Mas no caso de quem tem TDAH, essas características aparecem todas juntas, associadas, e em uma intensidade e freqüência tal que comprometem, e muito, a vida do paciente – explica o psiquiatra Paulo Mattos, professor e pesquisador do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Todo mundo tem pressão arterial, mas algumas pessoas sofrem de hipertensão arterial, que é uma doença muito grave. O TDAH não é um traço de personalidade, como sugeriu recentemente a psiquiatra Ana Beatriz Silva, no seu livro Mentes Inquietas.

O psiquiatra gaúcho, Luis Augusto Rohde, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é mais um que a bater na mesma tecla.

– Quando se tem a opção de se medicar uma pessoa, é preciso fazer uma comparacão com a opção de não medicá-la. O TDAH não tratado está associado a diversos problemas, que vão de dificuldades na escola, problemas no emprego e nas relações interpessoais a maior risco de dependência química, uso de drogas e acidentes de trânsito. Acho que essa é uma lista bastante grande de argumentos a favor do tratamento médico do TDAH – assinala Luis Rohde.

TDAH e o uso de drogas

– Eu sempre tive dificuldades para seguir uma rotina normal, comum a qualquer pessoa. Eu precisava ficar inventando coisas para a vida ficar interessante. Na escola eu fazia parte da turminha da bagunça. Primeiro porque era muito mais divertido, e segundo por que eu nunca conseguia mesmo prestar atenção nas aulas, mesmo se me esforçasse. Na faculdade foi a mesma coisa. Eu não me interessava pelas aulas, começava a pensar em outras coisas no meio das explicações e deixava a matéria para escanteio – lembra o estudante universitário Lucas Carvalho. – Quando comecei a estagiar os problemas se tornaram ainda mais evidentes: eu não ficava satisfeito com nenhuma atividade e enjoava de todos os lugares em que trabalhava.

Uma das maneiras encontradas por Lucas para deixar a sua vida mais ”atraente” e menos enfadonha foi o uso de drogas. Ele conta que desde os 13 anos começou a fumar maconha e que a droga lhe dava no início uma sensação de fugir dos seus problemas. Além disso, o estilo de vida do grupo de amigo que fez nesse período era mais interessante para alguém que estava sempre procurando uma maneira de transformar a vida numa montanha-russa em tempo integral.

Eu gostava daquelas pessoas que não tinham um ritmo de vida normal. Quando eu era adolescente eu gostava daquela turma que usava drogas, vivia nos clubes e boates e não tinha hora pra voltar pra casa. Como eu não conseguia me concentrar nem fazer qualquer atividade por muito tempo. Me dedicar aos estudos, por exemplo, era, além de monótono, frustrante. Quando eu provei cocaína pela primeira vez, eu senti uma sensação ótima de estar concentrado, de prestar atenção nas coisas, de conseguir fazer uma mesma atividade horas seguidas. E disso eu não era capaz quando estava com a cara limpa.

”Automedicação”

Para ele a cocaína funcionou como uma espécie de automedicação. A droga é um estimulante do sistema nervoso central que tem ação semelhante a de alguns medicamentos utilizados para tratar o TDAH. Quem TDAH , ao contrário da maioria das pessoas que consomem cocaína, não relatam sentir que estão ”alucinados” ou ”vidrados”. Como já apresentam um comportamento hiperativo, eles sentem mais concentrados, capaz de prestar mais atenção nas coisas e conseguem se focar e realizar atividades que normalmente seria impossível.

No início eu consumia cocaína para aproveitar, para curtir. Eu me sentia bem, falava melhor e conversava melhor com as pessoas. Depois eu passei a consumir para não sentir os sintomas da abstinência, e consumia cada vez mais. Eu cheguei a um ponto que usava sozinho mesmo, nem mesmo meus amigos agüentavam o meu ritmo. A minha vida e a da minha família virou um inferno -completa Lucas, que depois de iniciar o tratamento em conjunto contra o TDAH e a dependência está conseguindo manter um longo período de abstinência.

Sinto que a minha vida agora funciona. Consigo sentir prazer em atividades banais, em levar um dia banal: acordar, arrumar a minha cama, ir para a faculdade, depois para o estágios. Agora eu consigo ver as coisas melhor e me planejar. Antes isso seria impossível.

Esse problema da relação do TDAH com o uso de drogas é mais um fator que demonstra a importância de se tratar o transtorno de maneira precoce e evitar que o indivíduo mais tarde incorra em perigosas ”automedicações”.

Componente hereditário

Existem evidências de que o TDAH possui um forte componente hereditário. Ainda não existe uma comprovação científica conclusiva de que o TDAH esteja realmente ligado a um ou vários genes, mas os médicos já perceberam na prática que quem apresenta o distúrbio tem pais que sofrem do mesmo problema.

– Uma vez uma paciente veio se consultar pela primeira vez e perguntou se poderia entrar na sala acompanhada dos dois filhos pequenos. Eu concordei e disse que não haveria problemas. Não é difícil imaginar que com uma mãe impulsiva e com pouca paciência, mais dois filhos hiperativos que não paravam quietos e não escutam, nem obedecem, a consulta ficou inviável – lembra a psiquiatra Vanessa Ayrão, que também é pesquisadora do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, no Rio de Janeiro. A médica precisou de um certo jogo de cintura para resolver o problema. – Ela foi ficando irritada porque tentava controlar as crianças e não adiantava. Eu tive que pedir para deixar os filhos na sala de espera com a secretária para conseguir prosseguir com a consulta, mas o diagnóstico já estava praticamente dado: os três tinham TDAH. Os testes posteriores só comprovaram o que eu já tinha constatado.

Especializado no atendimento e tratamento de crianças, Ênio Andrade também afirma que pelos números é fácil perceber a importância do componente hereditário no TDAH.

Já existem comprovações estatísticas em todo o mundo. Cerca de 90% dos adultos com TDAH de quem eu trato chegaram até mim procurando tratamento para os filhos, por causa dos já tradicionais problemas na escola. Facilmente eu percebia que eles também apresentavam sintomas de TDAH e, depois que se informavam sobre o assunto, também se interessavam em seguir o tratamento. Também não há motivos para ter receio em relação aos medicamentos. Os mais comuns já foram altamente testados e tem eficácia e segurança comprovadas – conclui o médico.

Rafael Alves Pereira é jornalista formado pela PUC-Rio e trabalha atualmente na Rádio CBN. Ele escreve para a ABDA reportagens quinzenais, que trazem depoimentos de médicos e pacientes e têm o objetivo de oferecer mais informações sobre o TDAH para quem convive com o problema e para o público em geral. São abordados assuntos como o cotidiano do portador de TDAH, avanços médicos na área e o tratamento dos pacientes.


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