O Cérebro do TDAH: Por que o TDAH e o Planejamento Financeiro Entram em Conflito e Como Construir um Futuro Sólido
Introdução: A Ética do Futuro e a Tirania do Presente
O que é, afinal, planejar?
No turbilhão da vida cotidiana, raramente paramos para refletir sobre a natureza desse ato que parece tão trivial, mas é profundamente humano. Planejar — seja a aposentadoria, as contas do mês ou as férias do próximo ano — é, em essência, um exercício de responsabilidade ética. É um diálogo que o nosso “eu” do presente estabelece com o nosso “eu” do futuro. É um ato de fé que pressupõe que haverá um amanhã, e que esse amanhã será melhor se fizermos um sacrifício, por menor que seja, hoje.
Como nos lembra o filósofo Mario Sergio Cortella, uma vida sem propósito, sem um “porquê” claro, torna-se refém das circunstâncias.
O planejamento financeiro, nesse contexto, não é sobre acumular; é sobre definir um sentido para nossas ações econômicas, alinhando o que fazemos com o que valorizamos.
Aqui, no entanto, encontramos o primeiro e mais brutal conflito para o indivíduo com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). O cérebro com TDAH opera sob a tirania implacável do “agora”. O futuro, para esse cérebro, não é uma realidade concreta pela qual vale a pena sacrificar o presente. O futuro é uma névoa pálida, abstrata e, o mais importante, desprovida de poder motivacional.
Isso não é uma falha de caráter. É uma condição neurobiológica.
Quando falamos de TDAH e finanças, não estamos falando de preguiça ou irresponsabilidade. Estamos falando de um prejuízo funcional documentado. Estudos e revisões de literatura são claros: adultos com TDAH enfrentam um risco significativamente maior de dificuldades financeiras, menor estabilidade profissional e, consequentemente, menor renda. Uma revisão sistemática identificou a “gestão financeira” como um dos principais domínios de impacto negativo do TDAH na vida adulta. Isso se traduz, na prática, em gastos impulsivos, uso excessivo de cartões de crédito e uma quase incapacidade de construir reservas financeiras.
O senso comum aponta o dedo para a impulsividade — o desejo irrefreável de comprar o que se vê. E, de fato, ela é uma vilã. Contudo, a realidade é mais complexa e sutil. Evidências recentes, destacadas inclusive pela Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), mostram que no mundo dos investimentos, por exemplo, a desatenção pode ser um preditor ainda mais forte de comportamentos de alto risco e baixo retorno do que a própria hiperatividade/impulsividade.
A impulsividade leva o indivíduo a comprar o sapato que não precisava. A desatenção o faz esquecer de pagar a fatura do cartão de crédito, gerando juros exorbitantes. A desatenção o impede de verificar o extrato bancário, criando uma dissonância entre o plano (a intenção de economizar) e a ação (o gasto real). A desatenção nos torna “investidores reativos”, focados no pânico de curto prazo, incapazes de sustentar uma estratégia de longo prazo.
Pense na cena: a conta acabou de cair, a fatura do cartão ainda não chegou, e o cérebro já dispara aquele impulso súbito — “eu mereço isso!”. O raciocínio é instantâneo, quase fisiológico. O problema é que, no TDAH, o impulso não passa pelo filtro da previsão. O futuro simplesmente não chega a tempo de ser consultado. O “eu do amanhã” é uma abstração, uma voz que fala baixo demais diante da dopamina que sussurra: compra agora, depois você pensa.
Este artigo é um convite para pais e pacientes. Um convite para primeiro, dissecar o porquê neurobiológico por trás desse caos financeiro, removendo a culpa paralisante. E, segundo, para construir, de forma prática e compassiva, os “andaimes” e “guarda-corpos” necessários para gerenciar a tirania do presente e, finalmente, começar a construir um futuro sólido.
Dissecando o “Caos”: O Que é a Disfunção Executiva?
Para entender por que uma pessoa inteligente, criativa e capaz pode falhar tão consistentemente em algo como pagar uma conta no prazo, precisamos olhar para o “painel de controle” do cérebro. Estamos falando das Funções Executivas
As Funções executivas são um conjunto de habilidades mentais de alta ordem que atuam como o “CEO” ou o “gerenciador” do nosso cérebro. Elas são responsáveis por ativar, organizar, integrar e gerenciar todas as outras funções cerebrais. O TDAH, em sua essência mais profunda, é hoje compreendido não apenas como um déficit de atenção, mas como uma alteração fundamental nesse funcionamento executivo. É como ter um CEO brilhante em concepção de ideias, mas cronicamente ausente na execução do dia a dia.
Embora o modelo das Funções Executivas seja complexo, três pilares centrais, descritos na literatura , são diretamente responsáveis pelo colapso financeiro:
- Controle Inibitório (O “Freio”): É a habilidade de suprimir uma resposta automática ou um impulso. É o que permite que uma pessoa com TDAH veja uma promoção “imperdível”, sinta o desejo de comprar, mas pause e pense: “Isso cabe no meu orçamento?”. No TDAH, esse “freio” é menos eficiente. O tempo entre o estímulo (ver a promoção) e a ação (passar o cartão) é quase inexistente.
- Memória de Trabalho (O “Post-it” Mental): É a capacidade de manter ativamente informações na mente enquanto se executa uma tarefa. Quando você vai ao supermercado, sua memória de trabalho “segura” o orçamento e a lista de compras enquanto você caminha pelos corredores. No TDAH, esse “post-it” mental é volátil. O indivíduo pode esquecer o orçamento quando vê um chocolate. É a memória de trabalho que falha quando esquecemos de pagar uma conta, mesmo tendo visto o boleto pela manhã.
- Flexibilidade Cognitiva (O “Plano B”): É a capacidade de pensar de forma criativa e ajustar o comportamento a um cenário em mudança. Se um gasto inesperado acontece (o pneu fura), a flexibilidade cognitiva permite recalcular a rota: “Ok, este mês terei que cortar os gastos com restaurantes”. O cérebro com TDAH, sendo mais rígido, tem dificuldade em fazer essa adaptação. Ele pode continuar a gastar como se o imprevisto não tivesse ocorrido, pois mudar o plano exige um esforço executivo imenso.
É crucial entender que esses déficits não são teóricos. Eles são o mecanismo neurobiológico pelo qual o TDAH causa prejuízo funcional na auto-organização e no gerenciamento do tempo no cotidiano.
Sonuga-Barke e o “tempo emocional” do TDAH
Aqui entra o trabalho brilhante de Edmund Sonuga-Barke, psicólogo do desenvolvimento britânico que dedicou sua carreira a entender por que o cérebro com TDAH busca recompensas imediatas com tanta força. Ele propôs a teoria da “delay aversion”, ou aversão ao atraso: não é que o paciente não entenda o valor de esperar, é que esperar é neurologicamente aversivo.
Para o cérebro do TDAH, adiar um prazer é uma questão de custo-benefício. Para o cérebro com TDAH, é desconforto puro. A dopamina — esse neurotransmissor que impulsiona o sistema de recompensa — funciona como um maestro apressado, que exige o aplauso antes do fim da música.
Por isso, educar financeiramente alguém com TDAH exige mais do que planilhas. Exige entender o tempo emocional — o agora que grita e o depois que cochicha.
A “Miopia Temporal”: O Modelo de Russell Barkley Aplicado ao Dinheiro
Se as funções executivas são o “o quê” do problema, o trabalho do Dr. Russell Barkley, um dos maiores especialistas mundiais em TDAH, nos dá o “porquê”. Barkley teve um papel importante no campo ao propor que o TDAH não é primariamente um transtorno de atenção, mas sim um transtorno do desenvolvimento do controle inibitório e da autorregulação.
A autorregulação, segundo Barkley, é qualquer ação que dirigimos a nós mesmos para alterar nosso comportamento, visando mudar a probabilidade de uma consequência futura. E aqui está o cerne do problema: o déficit de inibição no TDAH impede o desenvolvimento de outras funções executivas que dependem dele, criando o que Barkley chama de “Miopia Temporal”.
A “Miopia Temporal” é a incapacidade de usar o futuro — recompensas distantes, punições potenciais — para guiar o comportamento no presente. O indivíduo torna-se refém do aqui e agora, governado não por suas regras internas ou planos futuros, mas pelos estímulos imediatos do ambiente.
Como isso se aplica ao dinheiro? Barkley divide as funções executivas internalizadas (dependentes da inibição) em quatro áreas. Duas delas são cruciais para o desastre financeiro:
- Memória de Trabalho Não-Verbal (A Visualização do Futuro): Esta é a nossa capacidade de “ver” o futuro com base em experiências passadas (memória retrospectiva e prospectiva). É o que nos permite “sentir” a dor da dívida do mês passado e usar esse “sentimento” para impedir a compra hoje. No TDAH, essa capacidade de visualizar o futuro (e o passado) é fraca. A aposentadoria, o pagamento da fatura no fim do mês, a dor da falência… tudo isso é abstrato, distante e sem poder emocional.
- Internalização da Fala (A Memória de Trabalho Verbal): Este é o nosso “diálogo interno”. É a voz que usamos para nos guiar, nos dar instruções e nos lembrar das regras (“Não compre isso, lembre-se do orçamento”, “Primeiro pague o boleto, depois veja a série”). Em indivíduos com TDAH, esse diálogo interno é menos desenvolvido, menos frequente ou menos eficaz em controlar o comportamento.
O resultado é um fracasso no ponto de ação. A pessoa com TDAH sabe que deveria economizar. Ela pode até ter lido livros de finanças. O conhecimento está lá. O que falha é o desempenho no momento da decisão, pois o cérebro não consegue ativar as informações internas (planos, memórias) para sobrepujar o estímulo externo (a promoção, o tédio).
A Tabela 1 ilustra como o modelo de Barkley se traduz em falhas financeiras cotidianas.
Tabela 1: O Modelo de Barkley e a “Miopia Temporal” nas Finanças
| Função Executiva (Modelo de Barkley) | O Que Ela Faz (Descrição) | Falha no TDAH (A “Miopia Temporal”) | Exemplo Financeiro Concreto |
| Controle Inibitório Comportamental | A capacidade de “pausar” antes de agir. | Incapacidade de adiar a resposta. O impulso não é filtrado. | Vê o item na vitrine, sente o desejo e compra. O tempo entre “ver” e “comprar” é zero. |
| Memória de Trabalho Não-Verbal | “Ver” e “sentir” o futuro com base no passado. | O futuro é abstrato e não motiva. A dor passada não é evocada. | “Aposentadoria? Isso não existe.” ou “Eu sei que fiquei devendo mês passado, mas dessa vez vai ser diferente.” |
| Internalização da Fala (Memória de Trabalho Verbal) | O diálogo interno que guia e lembra regras. | A “voz interna” da razão é fraca ou ausente no ponto de decisão. | Falha em lembrar-se da regra (“não gastar mais de “) no momento em que está dentro da loja. |
| Autorregulação da Motivação/Emoção | Gerar motivação interna para tarefas sem recompensa imediata. | Procrastinação extrema de tarefas “chatas” ou aversivas. | Pagar multas por não declarar o imposto de renda ou por pagar contas em atraso, apesar de ter o dinheiro. |
Fundação e Alicerce: Estratégias Práticas para Pais (Crianças e Adolescentes)
Armados com esse conhecimento, a pergunta muda de “Por que meu filho não consegue aprender?” para “Como posso ensinar de uma forma que o cérebro dele possa aprender?”. A educação financeira para crianças com TDAH não é sobre teoria; é sobre prática imediata, concreta e recompensadora.
O desafio central é o “problema do adiamento de gratificação”. Estudos clássicos demonstram que, quando apresentadas à escolha, crianças com TDAH optam cronicamente por recompensas menores e imediatas em detrimento de recompensas maiores e futuras. Forçá-las a esperar por uma “mesada” no fim do mês é criar um cenário de falha.
A solução, paradoxalmente, não é forçar a espera, mas trazer o futuro para o presente.
Estratégia 1: Encurtar o Ciclo de Recompensa (A Dica de Barkley)
O cérebro com TDAH precisa de feedback imediato. Se a recompensa (a mesada) está a uma semana de distância, ela não tem poder motivacional.
- Ação Prática: Fracione a recompensa. Em vez de uma mesada, utilize um “programa de economia de fichas” (token economy) ou um sistema de pontos. A criança arruma o quarto e ganha a ficha imediatamente. Ela guarda o brinquedo e ganha o ponto imediatamente. Essas fichas/pontos podem ser trocadas no fim do dia ou da semana por dinheiro ou privilégios. Isso encurta o ciclo “esforço-recompensa” para algo que o cérebro pode processar.
Estratégia 2: Tornar o Dinheiro e o Tempo Concretos
Dinheiro é um conceito abstrato, e o cérebro com TDAH lida mal com abstrações. Um saldo bancário digital não significa nada.
- Ação Prática: Use cofrinhos. Mas não qualquer cofrinho: use potes de vidro transparentes e rotulados. A criança precisa ver o dinheiro crescendo. Crie três potes (o “Método Envelope” físico ): um para “Gastar Agora” (pequenos desejos), um para “Economizar” (um objetivo maior, como um brinquedo) e um para “Doar” (ensinando empatia). O ato de fisicamente dividir o dinheiro torna o orçamento tátil e visual.
Estratégia 3: Gamificar e Dar Propósito (Tornar Divertido)
As funções executivas são ativadas pela motivação. Tarefas chatas (como economizar) são evitadas. A educação financeira precisa ser lúdica.
- Ação Prática: Transforme a economia em um jogo. Use jogos de tabuleiro sobre finanças. Crie “missões” de economia com recompensas. Um exemplo brilhante de narrativa é o gibi lançado pela CAIXA durante a Semana ENEF, onde personagens usam o planejamento financeiro para arrecadar dinheiro para um projeto escolar específico. Isso dá um propósito (um “porquê”) ao ato de poupar, que, por acaso, era para ajudar crianças com TDAH e misofonia.
Estratégia 4: A Mesada como “Treino de Falha Controlada” (Adolescentes)
Para adolescentes, o método precisa evoluir. Aqui, podemos usar uma estratégia contraintuitiva, mas poderosa: a “falha controlada”.
- Ação Prática: Entregue a mesada ou o dinheiro da semana de uma só vez. O adolescente, muito provavelmente, gastará tudo nos primeiros dias. Quando ele vier pedir mais dinheiro para o lanche na sexta-feira, a resposta deve ser um “não” empático, mas firme. A consequência natural (ficar sem o lanche, ter que levar de casa) é o feedback imediato e concreto que o cérebro dele precisa. Esta é uma lição de planejamento muito mais eficaz do que qualquer sermão, pois a consequência está ligada diretamente à ação.
Não esqueça de que um dos objetivos com as crianças com TDAH é traduzir o dinheiro para o concreto. Conceitos abstratos como “poupar”, “investir” ou “planejar” soam distantes para quem vive essencialmente no presente.
Comece com o básico: três potes coloridos — gastar, guardar e compartilhar. Essa estratégia transforma o dinheiro em algo visual e manipulável. Dê pequenas mesadas fixas, ligadas a metas curtas (“juntar para o brinquedo”, “comprar o presente da professora”).
Mais importante: ensine o erro sem punição. Crianças com TDAH aprendem com repetição e revisão, não com bronca. Diga: “Gastou tudo? Tudo bem, semana que vem você tenta de novo.” Essa leveza constrói algo precioso — autoconfiança. E autoconfiança é capital emocional.
Arquitetura da Ordem: Estratégias Práticas para Adultos (Construindo “Guarda-Corpos”)
Para o adulto com TDAH, a filosofia é radicalmente diferente da autoajuda tradicional. A meta não é “tentar mais”, “ter mais foco” ou “ter mais força de vontade”. A meta é aceitar a neurobiologia e mudar o ambiente, não o cérebro.
O objetivo é criar “andaimes” e “guarda-corpos”, sistemas externos que reduzam a demanda sobre as funções executivas que sabemos serem deficientes.
Estratégia 1: Automatizar o Essencial (Combate ao Esquecimento e Desatenção)
Se a memória de trabalho falha e a desatenção é um risco, a solução é remover a memória e a atenção da equação.
- Ação Prática: Use e abuse da automação. Configure o débito automático para todas as contas essenciais e fixas (aluguel, condomínio, luz, água, internet, plano de saúde).
- Ação Prática (Pague-se Primeiro): Crie uma transferência automática e programada. No dia em que o salário cai (ex: dia 5, 10h00), programe uma transferência (ex: 10h05) da sua conta corrente para uma conta de investimento ou poupança. Isso automatiza a economia, combatendo o viés de desatenção e removendo a necessidade de “lembrar de guardar”.
Estratégia 2: Criar “Fricção” (Combate à Impulsividade)
O gasto impulsivo prospera na ausência de atrito. A compra com “um clique” é o maior inimigo do TDAH. A solução é, deliberadamente, criar atrito.
- Ação Prática: Entre agora em todos os seus aplicativos (iFood, Amazon, Uber, lojas) e delete todos os cartões de crédito salvos. O simples ato de ter que levantar do sofá, buscar a carteira, e digitar os 16 números do cartão é, muitas vezes, atrito suficiente para que o controle inibitório (o “freio”) tenha tempo de agir e o impulso passe.
- Ação Prática (O “Sistema de Envelopes” Moderno): O TDAH lida mal com o abstrato. O limite do cartão de crédito é abstrato. Use dinheiro físico ou cartões pré-pagos para categorias de gastos voláteis (lazer, restaurantes, compras). Quando o dinheiro físico do envelope “Lazer” acaba, o gasto para. A consequência é imediata e concreta.
Estratégia 3: O Orçamento “À Prova de TDAH” (Combate ao Tédio e à Desorganização)
Aqui está uma verdade inconveniente: aplicativos de orçamento tradicionais são, em sua maioria, incompatíveis com o TDAH. Eles exigem exatamente as funções executivas que estão em déficit: memória de trabalho (lembrar de anotar cada gasto), atenção sustentada (fazer isso todo dia) e organização (categorizar). O resultado é o abandono após alguns dias.
A solução precisa ser automatizada ou divertida.
- Ação Prática (“Gamificação”): Utilize aplicativos que “gamificam” o orçamento, transformando-o em um jogo. O mais famoso é o YNAB (You Need A Budget), que opera na filosofia do “envelope”. Em vez de restringir (o que o TDAH odeia), o YNAB faz você alocar (dar um “trabalho” para cada real que entra). Isso é mais estimulante e proativo.
- Ação Prática (A “Conta Escondida”): Esta é uma estratégia radical, mas altamente eficaz para quem luta contra a auto-sabotagem. Crie uma conta poupança ou de investimento em um banco diferente do seu banco do dia a dia. O mais importante: não instale o aplicativo desse banco no seu celular e não tenha o cartão de débito. A única forma de sacar o dinheiro é indo fisicamente à agência ou fazendo uma transferência demorada. Isso cria o máximo de fricção, protegendo suas economias de você mesmo em um momento de impulso.
- Crie uma “sala de comando financeira”, mesmo que seja uma mesa com post-its e alarmes redundantes. Transforme o invisível em visível: o cérebro com TDAH funciona melhor com pistas externas.
Outras estratégias úteis:
- Use cartões pré-pagos ou contas separadas para lazer, mercado e transporte.
- Implemente a regra das 24 horas: toda compra não essencial deve “dormir uma noite”.
- Estabeleça dois dias por semana para revisar gastos — breves, objetivos, inegociáveis.
- E principalmente: elimine a culpa. O cérebro aprende mais com feedback que com autocrítica.
A Tabela 2 resume as estratégias para os diferentes desafios neuropsicológicos.
Tabela 2: Resumo de Estratégias Práticas (Crianças vs. Adultos)
| Desafio Neuropsicológico do TDAH | Estratégia para Crianças (Pais) | Estratégia para Adultos (Pacientes) |
| Esquecimento / Falha na Memória de Trabalho | N/A (Responsabilidade dos pais) | Automação total (Débito automático, transferência programada). |
| Impulsividade / Falha no Controle Inibitório | “Falha controlada” (Deixar gastar a mesada e lidar com a consequência). | Criar “Fricção” (Deletar cartões salvos, usar dinheiro físico ou pré-pago). |
| Dificuldade de Adiar Gratificação (Motivação) | Recompensas imediatas e fracionadas (Sistema de fichas). | “Gamificação” do orçamento (Ex: YNAB). |
| Desorganização / Dificuldade de Planejamento | Tornar o dinheiro concreto (Potes transparentes, Método Envelope físico). | A “Conta Escondida” (Alta fricção) ou Orçamento automatizado. |
Quando o “Agora” Destruiu o “Amanhã”: Lidando com Dívidas Graves e Falência Pessoal
Para alguns, este artigo pode chegar tarde. O que fazer quando a “miopia temporal” já causou estragos profundos, levando ao endividamento grave ou à falência pessoal?.
Primeiro, é preciso reconhecer que, nesse estágio, o gasto provavelmente deixou de ser apenas “impulso” e tornou-se “compulsão”. A compra compulsiva raramente é sobre o produto; é sobre a função do gasto. É uma busca desesperada por alívio da ansiedade, do tédio ou da tensão. O cérebro com TDAH, com sua baixa tolerância ao tédio e dificuldade de regulação emocional, é um terreno fértil para esse ciclo.
Nesse ponto, não estamos mais falando de “dicas de organização”. Estamos falando de uma “UTI” financeira e psicológica.
O Plano de “UTI” Financeira
- Passo 1: Estancar o Sangramento (Ação Imediata). A prioridade é parar a hemorragia. Isso significa, muitas vezes, tomar medidas drásticas que o TDAH odeia: cortar, bloquear ou congelar todos os cartões de crédito. Em alguns casos, pode ser necessário entregar o controle financeiro (temporariamente) a um cônjuge, familiar confiável ou administrador.
- Passo 2: Visibilidade Total (Combate à Negação). A ansiedade prospera no desconhecido. O endividado com TDAH muitas vezes não sabe o tamanho real do problema, pois a desorganização o impede de somar as faturas. É preciso criar um momento (talvez usando o hiperfoco) para uma tarefa única: mapear todas as dívidas. Colocar tudo em uma planilha. A verdade, embora dolorosa, é o primeiro passo para o plano de ação.
- Passo 3: Ajuda Profissional (O Andaime Externo). Tentar sair de uma dívida grave sozinho, tendo TDAH, é como tentar construir um prédio sem engenheiro. É crucial buscar ajuda externa: um planejador financeiro (que, idealmente, entenda TDAH) para estruturar um plano de pagamento, e, em casos de insolvência, advogados para renegociação ou proteção legal (recuperação judicial pessoal).
O Papel Central do Tratamento (TCC e Medicação)
Nenhum plano financeiro funcionará se a causa-raiz não for tratada. O tratamento do TDAH (medicação psicoestimulante ou outras) é a base, pois ao melhorar o controle inibitório e a atenção, ele fornece a “matéria-prima” neurológica para a mudança.
Contudo, a medicação não ensina habilidades. É aqui que a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) se torna essencial. A TCC para o TDAH foca em:
- Psicoeducação: Entender o porquê (como explicado neste artigo) reduz a autocrítica e a vergonha, permitindo a ação.
- Identificação de Gatilhos: Ajudar o paciente a identificar quais emoções (tédio, tristeza, ansiedade) ou situações disparam o comportamento de gasto.
- Desenvolvimento de Estratégias: Criar um “cardápio” de estratégias de enfrentamento (coping) que não sejam financeiramente destrutivas (ex: “Quando me sentir ansioso, em vez de comprar, vou ligar para um amigo ou fazer 10 minutos de exercício”).
A boa notícia é que o planejamento financeiro pode ser aprendido. Com estrutura, autoconhecimento e tratamento adequado, é possível criar um sistema externo que compensa o ruído interno. E, quando isso acontece, o dinheiro deixa de ser fonte de culpa — e volta a ser o que deveria: uma ferramenta de liberdade.
Conclusão: Recuperando a Agência sobre o Tempo
Retornamos ao início. O planejamento financeiro, para o TDAH, é muito mais do que dinheiro. É uma batalha filosófica entre a tirania do presente e o direito a um futuro.
Uma vida refém do impulso imediato é uma vida sem agência, uma vida de constante reação ao ambiente. O tratamento multimodal — que inclui medicação, psicoeducação , TCC e os sistemas de organização que discutimos (automação, fricção, gamificação) — não tem como objetivo “curar” o TDAH ou torná-lo “normal”.
O objetivo é muito mais profundo: é recuperar a liberdade.
A liberdade de não ser um escravo do “agora”. A liberdade de poder escolher um futuro e ter as ferramentas para, tijolo por tijolo, construí-lo. A organização financeira não é o fim em si mesma. Ela é o meio para uma vida autônoma, onde o indivíduo pode, finalmente, alinhar suas ações diárias (o que faz) com seus valores mais profundos (o porquê faz). Essa é a conquista final.
Referências
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