Muitas pessoas são portadoras do Transtorno do Déficit de Atenção e não sabem, o que pode comprometer bastante o desenvolvimento acadêmico e profissional

Por Rafael Alves Pereira*
rafa_alves@hotmail.com

O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH)  ainda pouco conhecida pelo grande público e que afeta centenas de pessoas, sendo que a maioria delas não tem a menor idéia de que sofre do problema. Os sintomas podem variar de um indivíduo para outro, mas de forma geral costuma-se dizer que as pessoas que sofrem deste transtorno “vivem no mundo da lua”, nunca prestam atenção em nada, têm dificuldade de se lembrar de coisas triviais e não conseguem se concentrar ou manter a atenção em alguma atividade por muito tempo. A enfermidade freqüentemente vem associada a uma inquietude constante, que lembra aquele velho ditado que diz que a pessoa está com “bicho-carpinteiro pelo corpo”: não consegue parar quieta um minuto, fala o tempo toda, está sempre em ritmo acelerado, é impulsiva e foge de atividades monótonas e repetitivas.

Quem sofre disso sabe o quanto o TDAH, que ainda é sub-diagnosticado no país, pode trazer problemas para a vida profissional e acadêmica. Muitas pessoas têm seu desempenho no trabalho sensivelmente diminuído e não conseguem desenvolver todo o seu potencial, o que freqüentemente pode causar problemas de auto-estima e atritos desnecessários entre os companheiros de escritório.

O advogado Leandro Cariello, um dos fundadores da ABDA (a Associação Brasileira de Deficiência de Atenção) tem  TDAH e conta que já teve problemas antes de

Esquecer compromissos é uma queixa freqüente dos portadores da doença, pois a memória fraca é um dos sintomas mais presentes do transtorno. No ambiente profissional, o esquecimento de um compromisso importante pode ser interpretado como falta de seriedade e de profissionalismo, colocando em cheque o prestígio e o reconhecimento profissional. As conseqüências podem ser sérias, variando desde a perda de um polpudo contrato a um enérgico puxão-de-orelhas da chefia. Ir para o cadafalso e passar a engrossar a fila do seguro desemprego também é uma possibilidade que sempre ronda aqueles que não conseguem organizar a agenda, planejar compromissos com antecedência e são adeptos do ditado “por que fazer hoje o que posso deixar para amanhã ou depois de amanhã”. Típico de quem sofre de TDAH.

O preço do esquecimento

– Logo que terminei a faculdade de direito fui fazer a prova da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para obter o registro profissional. Fui muito bem na primeira fase das provas e fiquei em segundo lugar, com chances de ficar em primeiro no cômputo geral. Só que eu simplesmente me esqueci da segunda fase da prova e não fui fazer o exame. Não preciso dizer que isso atrasou toda a minha vida, já que tive que fazer a prova no ano seguinte – relembra outro advogado, Jeremias Chaves, que teve o diagnóstico realizado há 4 anos e hoje já consegue conviver melhor com o problema.

-Nunca consegui me lembrar de nada e já perdi compromissos importantes por causa do TDAH. Na época eu não sabia que tinha a doença. Familiares e amigos viviam dizendo que eu era uma desorganizada e que não conseguia ordenar minhas coisas. Tanto falaram que eu “tinha que ter uma agenda e escrever todos os meus compromissos para não esquecer” que acabei jogando a toalha e comprei uma – conta a administradora Raquel Siqueira, para logo em seguida finalizar, entre irônica e resignada – Mas aí eu me esquecia de olhar na agenda os meus compromissos.

Segundo Paulo Mattos, médico psiquiatra e também um dos fundadores da ABDA, o esquecimento com freqüência é a principal queixa de pacientes adultos com TDAH:

paulo– Apesar da desatenção ser o núcleo do transtorno (e inclusive dando nome a enfermidade), ela com freqüência não é a queixa principal, que tende a ser o esquecimento de inúmeras coisas na vida cotidiana. A memória depende do perfeito funcionamento da atenção para que os processos de aquisição, armazenamento e recuperação de material possa ocorrer. Surpreendentemente, alguns adultos com TDAH têm memória excelente, apesar de apresentarem todos os demais sintomas do transtorno, como desatenção, desorganização, impulsividade, intolerância a contextos monótonos e repetitivos e falta de planejamento – esclarece Paulo Mattos.

Impulsividade é um sintoma freqüente

Quando desconhecido e não controlado, o TDAH pode ser um inimigo perigoso. Um dos sintomas mais freqüentes da doença, sobretudo nos homens, é a impulsividade, que nem sempre é bem vista nos sóbrios e controlados escritórios onde vigoram as impiedosas regras estabelecidas pelos gerentes de recursos humanos. Um ato impensado pode representar a diferença entre ganhar a tão sonhada promoção ou ir para a temida zona de fritura – aquela em que a pessoa se sente um pária dentro da empresa e vê suas atribuições e responsabilidades diminuindo gradativamente, até que recebe o bilhete azul ou toma ela mesma a iniciativa de pedir demissão.

O executivo Cláudio Linhares, que a vida inteira foi conhecido entre os amigos e familiares como uma pessoa de pavio-curto, conta que já passou por uma situação bastante embaraçosa no início da carreira, ainda antes de saber que era portador do TDAH. Recém saído da universidade e pouco afeito aos salamaleques da diplomacia dos grandes escritórios, ele estava passando por um programa de avaliação periódica, no qual o funcionário era sabatinado a cada quanto por seus superiores e recebia o resultado do seu desempenho no período, que poderia vir acompanhado tanto de uma promoção quanto de uma dura reprimenda. Ciente de que havia realizado um bom trabalho, para ele a promoção que receberia não era mais do que merecida. E não fez a menor questão de disfarçar isso:

– Os meus três chefes que estavam responsáveis pela minha avaliação me chamaram para uma reunião, me comunicaram que estavam muito felizes com o meu trabalho e que decidiram me promover. Me promoveriam a um nível acima na hierarquia da empresa. Naturalmente esperavam que eu demonstrasse estar muito contente com o “presente” que estavam me dando.

Pois a reação de Cláudio nada teve da previsível gratidão esperada pelos três inquisidores que estavam à sua frente. Exibindo um ar de arrogante indiferença, ele comentou que achava a promoção que lhe foi proposta não somente merecida, como também insuficiente.

– Sem pensar muito, aliás, sem nem pensar nada, eu disse que achava que meu desempenho havia sido superior a gratificação que eles estavam me dando, e que deveriam me promover dois níveis de uma única vez, ao invés de um. O constrangimento foi geral. E então eles me explicaram, tentando manter um tom cordial apesar de estarem visivelmente contrariados, que isso não poderia ser feito, pois deveria ser seguida a ordem hierárquica do escritório.

Arrependimento

Pacientes, ainda que nada satisfeitos, os chefes falaram que, se fossem excessivamente generosos com um único funcionário, isso poderia criar um clima desagradável com os outros companheiros de trabalho e as reclamações e ciumeiras seriam inevitáveis. Não satisfeito em ter criado toda essa saia-justa, Cláudio ainda arrematou em grande estilo:

– Eu disse que isso não era problema meu e que não seria justo que eu fosse penalizado por questões burocráticas se o meu desempenho me qualificava para o posto – o que só serviu para que os superiores passassem, de constrangidos e perplexos, a irritados com o que foi interpretado como uma grande demonstração de ingratidão.

– A situação foi toda muito desagradável. Agora eu sei que se tivesse me controlado poderia ter obtido um resultado muito melhor nesse episódio da promoção. Me arrependo da minha atitude, mas ainda hoje penso que não estava errado na minha reclamação, apenas aquela não era a maneira mais indicada para me expressar – completa Cláudio, dizendo que atualmente já consegue domar sua impulsividade no ambiente de trabalho. Ele afirma que o tratamento médico e os medicamentos foram fundamentais para que conseguisse controlar a enfermidade e evitar novos problemas no escritório.

Criatividade e rapidez podem ser o forte de quem sofre do TDAH

Mas o TDAH não representa apenas um conjunto de empecilhos para a vida do portador. O advogado Jeremias Chaves, que nos últimos meses comprou mais um aparelho celular – na vã tentativa de usar um para questões familiares e outro para assuntos profissionais – e que freqüentemente se pega falando nos dois telefones ao mesmo tempo sobre assuntos e com pessoas completamente diferentes, dá um exemplo próprio para ilustrar o que pode ser considerada uma característica positiva do transtorno:

– Tenho muito estímulo para fazer muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. E eu acho que isso é bom – defende.

Será? Esse sintoma de Jeremias confirma a experiência clínica da maioria dos médicos e os estudos já realizados até hoje sobre o TDAH, que mostram que a maioria dos homens apresenta maior número de sintomas hiperativo-impulsivos que as mulheres. O TDAH compreende sintomas de desatenção e hiperativo-impulsivos.

– Há três formas do TDAH: a forma hiperativa-impulsiva, com predomínio dos sintomas de hiperatividade e impulsividade; a forma desatenta, com predomínio dos sintomas de desatenção; e a forma combinada, que apresenta os dois tipos de sintomas em freqüência semelhante. A maioria dos homens sofre da forma combinada, com uma freqüência maior de sintomas hiperativo-impulsivos, como impulsividade, impaciência, ter “pavio-curto” e ficar em movimento o tempo todo – explica Paulo Mattos.

As pessoas que apresentam o quadro de hiperatividade próprio do TDAH podem ter grande facilidade para fazer tarefas que exijam pensamento rápido, intuição e criatividade. Em geral são pessoas que parecem estar movidas por um motor de bateria inesgotável, com energia suficiente para deixá-las ligadas e a mil por hora grande parte do dia. Não param de falar um minuto, estão sempre buscando novas atividades e podem fazer diversas coisas ao mesmo tempo.

– Elas mesmas procuram atividades que sejam mais dinâmicas e ativas, por que sabem que não vão suportar coisas monótonas e repetitivas. Profissões como publicidade e propaganda e produção artística são algumas que os portadores estão mais inclinados a escolher e podem ter desempenho excelente em suas carreiras – esclarece o Paulo Mattos, acrescentando que em geral o sucesso irá depender do trabalho em equipe, onde outras pessoas farão aquelas atividades que o portador de TDAH terá muitas dificuldades de desempenhar.

O problema acontece nas tarefas que exijam concentração no lugar de baterias supercarregadas, método ao invés de criatividade e paciência em vez ousadia. E nessa hora o TDAH pode se tornar um grande empecilho na vida do portador. Uma pessoa que se destaca realizando um trabalho no qual as suas “deficiências” causadas pelo TDAH – falta de atenção, impulsividade, esquecimento – não comprometem tanto ou são compensadas pelo restante do grupo, em um dado momento pode ser obrigada a mudar de atividade e ver o seu rendimento despencar.

Baixa auto-estima compromete o rendimento e a satisfação pessoal

Tarefas como realizar relatórios minuciosos, analisar balancetes com atenção a cada vírgula e fazer planejamentos cuidadosos podem ser um verdadeiro castigo. A pessoa não consegue se concentrar, acaba se distraindo por qualquer coisa – o barulho do vento sibilando na cortina ou o tic-tac do relógio de mesa podem ser o suficiente – e no final se sente cansada e incapaz de fazer o trabalho que lhe foi confiado. O golpe na auto-estima é certeiro e tende a comprometer bastante o desenvolvimento profissional.

Isso pode fazer com que o portador tenha uma avaliação sempre negativa de si, sub-avaliando as suas qualidades e superdimensionando as deficiências. O resultado é um desempenho profissional e acadêmico aquém da capacidade e uma sensação constante de frustração.

Hoje aposentada, a ex-funcionária pública Ângela Magalhães teve sorte de já aos 18 anos passar em um disputado concurso público e desfrutar da cômoda estabilidade do emprego. Nunca teve que se preocupar para se manter no trabalho e realizava suas tarefas, a maioria delas referentes a burocracias de escritórios, sem grandes problemas.

– Nunca tive nenhuma dificuldade no meu trabalho, e acho que me saía muito bem em tudo o que eu realizava. Mas a verdade é que eram em geral atividades que não requeriam muito esforço ou concentração. Eram serviços simples que eu fazia corretamente.

Como a maioria das mulheres, ela apresenta predomínio dos sintomas da forma desatenta da doença – prestar pouca atenção em detalhes e cometer erros tolos, dificuldade de lembrar nomes e endereços, problemas para exercer atividades que exijam concentram por tempo prolongado – e passou a vida inteira com um sério problema de auto-estima por não conseguir realizar tarefas cotidianas: tinha grande dificuldade de “acordar” e se “ativar” pela manhã e, aos olhos dos familiares, parecia ter preguiça em tempo integral:

– Passei a minha vida inteira ouvindo meu pai me dizer que eu era “uma carga de preguiça”. Mas eu sabia que o que eu tinha não era preguiça, só não sabia o que era. Me sentia muito frustrada por não conseguir realizar coisas simples nas quais as amigas da escola não encontravam qualquer dificuldade.

O diagnóstico de Ângela foi tardio. Ela só descobriu agora, aos 46 anos, que tem TDAH e está passando pela fase de fazer uma reavaliação completa da sua vida.

– Eu nunca realizei um trabalho, uma atividade que me deixasse realizada pessoal e profissionalmente por que sempre havia algo em mim que não deixava e eu não sabia o que era. Quando fiz um teste de QI e recebi o resultado – ela tem QI acima da média segundo teste neuropsicológico realizado em centro especializado – foi um inferno. Isso só reforçou a tese do meu pai de que eu não passava de uma preguiçosa e que não conseguia sucesso em nada por pura falta de vontade.

Ângela agora começou a fazer tratamento e comemora as pequenas vitórias que já está colecionando no dia-a-dia:

– Eu nunca conseguia me lembrar de endereços, números de telefone ou compromissos. Sempre me esquecia, me confundia e me atrapalhava toda. Sempre que tinha que ir a algum lugar lia e relia o tempo todo o endereço e me esquecia segundos depois. Tinha que ficar relembrando a cada instante. Mas outro dia fui à farmácia e havia anotado o endereço em um pedaço de papel que coloquei na minha bolsa, um hábito antigo. Quando estava na rua certa, automaticamente fui pegar o papel para ver o número quando “plim”, como num passe de mágica, me lembrei sem precisar olhar o papel. Quem não sabe o que é sofrer de TDAH e ser chamada de “carga de preguiça” a vida inteira pode não entender, mas poucas vezes me senti tão feliz. A sensação que tenho é a de que eu fui concebida novamente agora, e que a minha vida vai recomeçar. E daqui para frente vai ser muito melhor – comemora, acrescentando que já tem um teste vocacional marcado e que pretende o quanto antes começar a fazer tudo o que passou a vida inteira tentando e não conseguia.

*Rafael Alves Pereira é jornalista formado pela PUC-Rio e trabalha atualmente na Rádio CBN. Ele escreve para a ABDA reportagens quinzenais, que trazem depoimentos de médicos e pacientes e têm o objetivo de oferecer mais informações sobre o TDAH para quem convive com o problema e para o público em geral. São abordados assuntos como o cotidiano do portador de TDAH, avanços médicos na área e o tratamento dos pacientes.