E quando o professor tem TDAH?

Já lecionei para diversos alunos portadores de TDAH. Alguns, diagnosticados, realizaram tratamento com medicação e não tiveram grandes problemas. Outros, sem o diagnóstico, por vezes eram classificados somente como “mal-educados” e simplesmente excluídos. Ainda hoje, por desconhecimento, o transtorno é chamado por alguns de frescura, desculpa de mãe que não sabe impor limites. E, os poucos que conhecem o tema, costumam detectar o TDAH somente em meninos. Sem o laudo, realmente não é fácil distinguir o menino impulsivo do puramente violento.

Em 20 anos de sala de aula, não me lembro de ter qualquer aluna com o diagnóstico de TDAH. E, confesso minha ignorância, nem eu mesma suspeitaria  de que houvesse algo com aquelas meninas quietinhas, distraídas, com bom desempenho escolar e tão carinhosas. Eu mesma fui uma aluna com perfil similar.

Aos 5 anos, a pedagoga da escolinha suspeitou de autismo. Mas, como foi exatamente nessa época que me alfabetizei em casa, com a ajuda da minha mãe, ela acabou descartando essa possibilidade, em virtude da minha cognição “normal”. Então segui a vida escolar sempre com excelente desempenho, porém passando por episódios estranhos, tais como levar bronca dos professores por estar no mundo da lua, em vez de prestar atenção nas explicações. E, mais de uma vez, aconteceu de ir ajudar uma colega com dificuldades de aprendizagem, e constatar, ao ler o caderno dela, que faltavam partes do conteúdo do dia no meu. Um grande mistério, pois eu nunca faltava às aulas, pouquíssimas vezes saía da sala para ir ao banheiro, mas havia sempre uma lacuna, como se eu tivesse permanecido distante por bastante tempo.

Note-se que até aqui carreguei, propositadamente, o texto de expressões preconceituosas, típicas de tempos em que muitos saberes nessa área eram/são ignorados. Anos atrás, para promover corretamente a inclusão de alunos neurodivergentes, passei a estudar o assunto. Acontece que não é possível despir-se da ignorância – que é infinita, conforme já ensinava Sócrates – de uma vez só. Primeiro descobri que meninas também têm TDAH, mas são subdiagnosticadas, pois nelas o transtorno se manifesta de maneira diferente. E que a única manifestação que as pessoas comuns conseguem identificar é o clichê do menino que não pára quieto, corre pela sala e não tem o caderno completo. Convenhamos que já foi um grande passo entender que se trata de algo bioquímico e não mais tratar a questão como falta de educação.

Faço tratamento para depressão ansiosa há quase uma década. Minha baixíssima autoestima parecia uma chaga que nenhuma terapia conseguia abrandar. Mesmo que a terapeuta identifique racionalmente diversas qualidades que, de fato, tenho. Talvez porque seja o que minha mãe chamava de “fogo de palha”, por começar muitos projetos ao mesmo tempo e desistir de todos. Nunca recebi uma medalha. Sou de andar rápido – eu era ótima na corrida, mas isso não era uma competição na época da escola -, sou de correr e às vezes parece que já dei 3 ou 4 voltas de vantagem sobre as demais pessoas, mas é como se elas completassem a primeira volta 2 segundos antes de eu completar a minha quinta, dando a impressão de que cheguei depois.

Um dia, apareceu na minha timeline do Twitter uma thread em que um rapaz, já passado dos 30 anos, se descobrira TDAH. Ele relatava como sua vida passou a fazer sentido, como conseguiu se perdoar a partir desse diagnóstico. E então, caiu mais uma pétala da minha flor da ignorância sobre o assunto: descobri que existe TDAH adulto. Então busquei um psiquiatra especialista para verificar se era o meu caso.

O leitor já deve ter adivinhado, logo nos primeiros parágrafos, que faço parte “do clube” também. Aos 41 anos de idade, recebi o diagnóstico de TDAH e iniciei o tratamento. Minha vida mudou completamente: eu me entendo, eu me perdoo, eu me ajudo. Na última semana, senti pela primeira vez o que imagino que seja a tal autoestima. Seria errado dizer que hoje sou outra pessoa, porque, na verdade, nunca fui tão eu mesma.

E agora observo as meninas. E dou atenção especial às que são quietas e distraídas. E, embora não seja profissional da saúde e nem tenha competência para diagnosticar algo, afirmo sem medo  de equívoco que o subdiagnóstico do transtorno é muito maior do que se supõe.

Sobretudo entre professores neurodivergentes. Que desconhecem o problema e sofrem demais. Não há quem não lhes aponte o dedo com críticas. O “mal-educado” que se falava sobre aluno é semelhante agora ao “vagabundo/relapso/omisso” dirigido aos professores com TDAH. E, enquanto não houver uma verdadeira conscientização, dificilmente esses profissionais se verão incluídos e poderão acolher os alunos com o transtorno.

Paula Rosiska é professora na rede pública paulista há 20 anos e autora do livro Vida ao rés do chão escolar ( Lux, 2021).
Atualmente, cursa o Mestrado Profissional em Letras, na USP, Universidade de São Paulo.