É  com muita honra que a ABDA publica o primeiro artigo de um importante colaborador e parceiro na Europa: Dr. José Boavida, Presidente da Sociedade Portuguesa do Defice de Atenção.

TDAH: quando a ignorância faz vítimas inocentes.

  • José Boavida e Miguel Mealha Estrada

Pela ética e pela saúde das nossas crianças e suas famílias temos de combater a ignorância de terceiros que fogem quando a floresta arde, deixando para trás as vítimas inocentes.

As perturbações do neurodesenvolvimento são um grupo de doenças causadas por um desenvolvimento anormal do cérebro, com repercussões neuroquímicas e com alto teor genético, com manifestações clínicas nos primeiros anos de vida.

São caracterizadas por déficits que afetam o funcionamento pessoal, social, acadmico ou ocupacional. Limitam-se a pouco mais de meia dúzia, nomeadamente transtorno do desenvolvimento intelectual, transtornos da comunicação (linguagem, fala, comunicação social, etc.), transtorno do espectro do autismo, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno de aprendizagem específica, transtornos motores (desenvolvimento da coordenação e movimento estereotipado), transtornos de tiques (incluindo Tourette), Síndrome de X-Frágil e outros transtornos não especificadas.

O TDAH é, tal como o transtorno do espectro ausista, um dos mais estudados, o mais frequente – mas, em pleno séc. XXI, infelizmente o mais discriminado. Pela sua elevada incidência associada ao grande impacto social e patológico, é considerado pelas agências competentes de saúde a nível global como uma patologia de alto risco para a saúde pública.

Um dos aspetos que distingue o TDAH de todas as outras, é a existência duma abordagem terapêutica farmacológica com elevada eficácia, a curto e a longo prazo, e um padrão de segurança ímpar entre os fármacos em geral e os psicofármacos em particular. Os medicamentos atualmente aprovados para o TDAH em Portugal são o metilfenidato (impropriamente designado por “ritalina”), a lisdexanfetamina e a atomoxetina.

É notável que vários estudos parecem apontar que o metilfenidato não só é benéfico no controle da patologia, mas também parece beneficiar o cérebro das crianças com TDAH. Por exemplo, estudos de ressonância magnética estrutural e funcional têm revelado que a massa cerebral total de crianças com TDAH que tomam a medicação é igual às que não sofrem da patologia. Em contraste, as crianças com TDAH que não tomam medicação, têm um volume de massa cerebral reduzido, comparado com os que tomam e com as que não sofrem da patologia.

Contudo, má informação, medos, estigma, dúvidas sobre a sua existência ou completa desinformação sobre a medicação e farmacocinética, contribuem em grande parte para que o TDAH seja o mais incompreendido transtorno do neurodesenvolvimento.

O que se sabe

O TDAH é o transtorno mais comum do neurodesenvolvimento, com uma prevalência de 5–7% na idade escolar, média a nível mundial. Nas últimas décadas, a investigação tem demonstrado que em cerca de 50% dos casos, não há remissão na puberdade, persistindo o problema até à idade adulta.

Tanto na criança como no adulto, raramente se desenvolve de forma isolada e as comorbilidades (patologias coexistentes) são a regra. Estas incluem insucesso acadêmico, problemas de aprendizagem específicos, comportamento de oposição e desafio, agressividade, abuso de substâncias, depressão, ansiedade, acidentes de todos os tipos, distúrbios da personalidade, criminalidade, doenças infecciosas, gravidezes precoces, divórcio parental e do paciente no futuro, entre muitas outras.

O desenvolvimento de situações comórbidas é imprevisível, o que dificulta a implementação de medidas preventivas. Sabemos hoje que crianças com TDAH têm em regra menos 12 anos de expectativa de vida, comparado com crianças sem a patologia.

O curso e os sintomas do TDAH podem mudar ao longo do tempo e a evidência disponível até hoje é pobre e amplamente inconsistente em relação aos preditores de persistência ou remissão.

Os mitos do costume

Apesar dos avanços no conhecimento do TDAH, continuamos a ver abordagens públicas a este transtorno que não têm em consideração o impacto que determinadas opiniões, menos fundamentadas, podem ter nos pacientes e nas suas famílias. Num mundo em que a comunicação é pensada ao milímetro, prefere-se o sensacionalismo, recorrendo a títulos e conteúdos cientificamente incorretos, ignorando-se a contribuição que se dá para o aumento do estigma associado ao TDAH.

Assumem-se como verdades incontornáveis uma série de mitos e equívocos sem qualquer validade científica, potencialmente perigosos ,e um risco à saúde pública, tais como:

  • O TDAH é um problema benigno, uma variante do normal, não existe como doença, é um diagnóstico inventado com o propósito de medicar crianças “normais”, por pressão dos pais ou dos professores.
  • O TDAH é consequência das incapacidades das famílias, de falta de força de vontade e desmotivação das crianças e de problemas sociais;
  • Há um excesso de diagnóstico e medicação no nosso país;
  • O excesso de diagnóstico do TDAH está relacionado com a falta de psicólogos nas escolas. Se houvesse o número suficiente destes profissionais o problema seria identificado precocemente, evitando-se o uso de medicação;
  • A intervenção não farmacológica (psicológica e educativa, para não falar em pseudociências como a hipnose, acupuntura, homeopatia, reiki, em dietas sem nexo e validação científica, além de outras intervenções não científicas) é tão eficaz como os fármacos;
  • A Ritalina [o metilfenidato] é um calmante, um espartilho químico e atua tornando as crianças “zumbis”;
  • A medicação pode ter alguns ganhos imediatos, mas a longo prazo tem efeitos secundários terríveis e catastróficos no desenvolvimento cerebral.

Quem paga o preço caríssimo pela negação da patologia são sempre os inocentes: a criança (e o seu futuro) e a sua família. Os pais, na sua maioria, são influenciados por falsas informações , sem competencia no ramo da saúde, por ideologia panfletária e populista de alguns partidos em que o seu conhecimento científico é praticamente nulo, tornam as crianças doentes, com famílias desesperadas em bodes expiatórios.

Em outras palavras, ideologias e ignorância fazem vítimas inocentes. A questão é:

Quem assume depois a responsabilidade por estas crianças e suas famílias?

Onde estão os opinadores e ideólogos quando a floresta arde?

Quem apaga o fogo?

Haverá um verdadeiro interesse no TDAH?

A reincidência de notícias sobre o TDAH, veiculando de forma reiterada o mesmo tipo de incorreções, faria pensar que o tema é interessante para a comunicação social.

No entanto, quando em abril passado em Lisboa, estiveram reunidos mais de 1500 investigadores e especialistas internacionais no 7º Congresso Mundial de TDAH, realizado em colaboração com a Sociedade Portuguesa de Défice de Atenção (SPDA), verificamos uma quase ausência de notícias e um desinteresse em entrevistar quem verdadeiramente investiga e sabe sobre o assunto.

Este fato leva a especular que a motivação subjacente à inclusão frequente desta temática em notícias sensacionalistas, não é o real esclarecimento científico, mas provavelmente vender jornais, obter audiências ou servir aos interesses de forças políticas ou de grupos profissionais. O alarme social relativo à medicação, associado às “fake news”, cria o clima adequado para facilitar a limitação da ação médica através da aprovação de medidas legislativas ou de ajudar certos “profissionais” a vender métodos de intervenção com muito pouca validação científica.

A ajuda dos serviços públicos

A forma de divulgação, no mínimo “pouco cuidada”, de dados relativos ao uso de psicoestimulantes por entidades públicas com grandes responsabilidades na área da saúde, como o Infarmed ou a Direção Geral da Saúde, dá claras oportunidades à imprensa mais sensacionalista e muitas vezes mal-intencionada, ou a quem interesse distorcer a realidade a seu favor, de gerar alarmismo e inquietação entre a população.

Em se tratando de medicações cuja informação exige por razões óbvias um cuidado particular, limitar-se a apresentar os dados relativos ao consumo em milhões de doses/ano, sem qualquer esclarecimento adicional sobre o número de crianças que usam a medicação e a percentagem de crianças no respectivo universo etário é dar uma forte contribuição para a especulação. Da mesma forma, as mesmas entidades assistem passivamente à utilização inadequada dos seus dados, sem sentir qualquer necessidade de prestar qualquer esclarecimento adicional.

O condicionamento da opinião pública

Os instrumentos utilizados para condicionar a opinião pública são bastante conhecidos.

Relatos imprecisos, generalizações abusivas de casos particulares, demonização dos efeitos da medicação e entrevistas a profissionais sem qualquer credibilidade científica na área são apenas alguns exemplos.

Também não é verdade, como por vezes se faz passar, que a este respeito haja duas correntes profissionais opostas, no que se refere às causas, às orientações diagnósticas ou à intervenção terapêutica. Pelo contrário, em poucas áreas da medicina e da ciência existe tal consenso entre todos os envolvidos. Atribuir validade científica às opiniões pessoais sobre TDAH, de diferentes profissionais da saúde mental, alguns conhecidos “comentadores da nossa praça” da área da psicologia ou outras, está na origem desta confusão.

Respeitar o TDAH e os seus portadores

Cada vez se torna mais importante distinguir percepções, impressões, preconceitos e mitos daquilo que é a crescente evidência científica relativa a um dos problemas do neurodesenvolvimento e de saúde mental mais estudados e investigados, em termos clínicos, psicológicos, neurobiológicos, genéticos ou mesmo sociais.

Nos últimos anos têm sido publicados múltiplos estudos, grandes meta-análises ou estudos baseados em registos nacionais de países como a Suécia, Dinamarca, Alemanha ou a região de Hong-Kong, envolvendo séries de dezenas de milhares de crianças e adultos com TDAH.

Esses estudos mostram de forma inequívoca as taxas de redução de riscos associados à medicação em vários aspetos psicossociais, como criminalidade, condenações e encarcerações, reincidência de crimes violentos  após libertação, depressão, suicídio, lesões não intencionais na criança e adolescente, lesões cerebrais acidentais nas crianças, acidentes de viação, consumos e mortalidade ao longo da vida.

As dificuldades crônicas em  concentrar-se, iniciar e executar tarefas, usar as funções executivas e modelar de forma adequada a atividade, os impulsos e as emoções associadas ao TDAH, têm um impacto que varia entre ligeiro e devastador. Para além de uma correta avaliação em cada caso sobre a adequação, as contraindicações, a eficácia e os efeitos secundários da medicação, com o conhecimento disponível hoje em dia, deve-se estar consciente de que não medicar também pode ter os seus custos.

Reduzir o fosso entre o que se sabe e está cientificamente comprovado e o que se diz e se veicula, promovendo boas práticas, é de extrema importância relativa a esta entidade e é um dos objetivos da Sociedade Portuguesa de Déficit de Atenção.

Pela ética e pela saúde das nossas crianças e suas famílias temos de combater a ignorância de terceiros que fogem quando a floresta arde, deixando para trás as vítimas inocentes.

José Boavida é Pediatra do Neurodesenvolvimento e Presidente da Sociedade Portuguesa de Défice de Atenção – SPDA – Portugal

Miguel Mealha Estrada é Especialista em Neurodesenvolvimento- Portugal

O artigo original  no site de Portugal pode ser lido no link: https://observador.pt/opiniao/perturbacao-de-hiperatividade-e-defice-de-atencao-quando-a-ignorancia-faz-vitimas-inocentes/?fbclid=IwAR1yNjTW8tvCYbW7ze7SJ6GvZZGkRnkHYRb899AFUKKMaVjGeU0kvkvZQww